sábado, 18 de março de 2017

Grafites de Ronald Polito

Por Jardel Dias Cavalcanti

Só seremos artistas sob a condição de sentirmos, como um conteúdo, como a própria coisa, aquilo que os não artistas chamam forma. (Nietzsche)

Amparado por dois frágeis fios de cabelo, o balanço se mantém firme numa pequena estrutura que o suporta. O que não se imagina é que, além do fio de cabelo, se trata de um balanço e seu suporte construídos com o mais fino grafite que se pode encontrar. Uma fragilidade absurda que, no entanto, se mantém firme como estrutura estável. Eis uma das obras da série Grafites, de Ronald Polito.




Grafite 0,7 mm e fios de cabelo, 5,8 × 2,7 × 2,8 cm, 2014

A arte moderna e contemporânea liberou o artista para que construísse suas obras com os mais variados e inusitados materiais. As proposições poéticas também ganharam um espaço de experimentação e de construção bastante amplas.
Quando pensamos nos Grafites, de Ronald Polito, é dentro desse quadro de dupla direção que devemos situar sua criação. Do ponto de vista do material, a escolha do grafite para a elaboração de suas obras é não só rara como inusitada. Da mesma maneira, uma conjunção da poética do delicado e do frágil com a ideia do arquitetônico, do resistente e do permanente é o que marca essa série.
Aliada a esses elementos, há que se perceber outra característica, agora ligada diretamente ao artista e seu processo de construção das obras, que é o trabalho paciente, exigente e hercúleo de colocar estruturas frágeis em pé, quando sabemos que o menor descuido em seu arranjo as pode levar à bancarrota. Àquilo que periga a um fácil desmoronamento, por seu alto grau de dificuldade de execução, Ronald Polito investe, contrariamente, uma obsessiva forma de controle sobre o material, tornando-o um grupo de estruturas firmes, que se sustentam, mesmo que sua aparência indique que facilmente podem estar prontas para desabar.

Grafites 0,7 e 2 mm, 9,5 × 10 × 10,5 cm, 2015

O fato de serem produzidas (ou organizadas) à mão pelo artista empresta um sentido físico bastante premente ao trabalho. Muito de nossa admiração por estas obras leva em conta esse procedimento dificultoso de armar estruturas geométricas que aparentam possuir ao mesmo tempo os elementos contrastantes da fragilidade e do equilíbrio. A exigência de um controle físico e paciencioso sobre o material é uma condição do procedimento do artista que nos faz pensar nas atividades meditativas dos mestres zen.
Há mais o que se pensar sobre os Grafites de Ronald Polito. Eles ora são expressão de uma ideia de equilíbrio, ora transmitem a expansão de uma força, quando pontiagudos grafites ameaçam uma explosão para fora; ora são desenhos geométrico que se bastam a si mesmos enquanto figuras admiráveis. Esses sentidos, se por vezes estão presentes de forma unida em algumas das obras, em outras aparecem separadamente.
Há algumas referências que podem ser chamadas para se buscar uma certa similaridade com a série Grafites. No entanto, a semelhança não define propriamente a aproximação das poéticas. Pense-se no caso da obra Acessão V, de Eva Hesse, por exemplo, onde a preocupação é com a modularidade minimalista.

Ou em algumas das “Estruturas de vibração”, como Cubo de Espaço Ambíguo, ou Volume suspenso, de Jesús Soto; apesar de a forma geométrica chamar a atenção, o artista está mais preocupado com a questão de como a forma e a cor podem produzir movimento, ou seja, criar uma poética do cinético.

Grafite 0,7 mm, 6 × 6 × 6 cm, 2014

No caso de Ronald Polito, as preocupações são de outra natureza. Sua poética trata precisamente dessa relação de força que se estabelece entre o material frágil e a possível criação de estruturas sólidas, cujo aspecto construtivista se ressalta. A delicadeza do material, extremamente frágil, se anula quando configurada em uma imagem acabada e bem construída. Fica a impressão de uma força que se organiza a partir da estrutura regular e bastante sólida, apesar da sabermos da natureza frágil do suporte dessa estrutura.
Podemos pensar, se quisermos ir um pouco mais além, dizendo que a poética de Ronald Polito se funda na ideia da fragilidade. Embora a estrutura exista, é como uma ilusão de permanência, de sustentabilidade, de força, já que a possibilidade do desmonte da obra é real. Qualquer contato com os grafites, por mais cuidadoso que se seja, pode ser fatal para a obra. Não há como negar essa característica que é imposta aos Grafites. Em uma exposição delas, o artista não poderia prescindir de um aviso aos espectadores: “Cuidado, é frágil”.
Ronald Polito, esse deslumbrante enfeitiçador, mantém suspensa sob nosso olhar a metafórica ideia de que a vida... cuidado, é frágil!
Quantas vezes esses trabalhos desmoronaram no momento de sua construção, só o artista pode nos dizer. Mas não devem ter sido poucas. A possibilidade do alicerce ruir deve ter sido constante e ameaçadora. Por isso, o esforço físico, invisível agora que a obra está pronta, deve ter sido gigantesco. Concentração, cuidado, trabalho árduo: sem isso não se constrói a fragilidade como força. (Nesse caso estaríamos dentro da tradição de artistas que vai de Baudelaire, Poe e Valéry até os Construtivistas, que acreditavam que o que é belo e nobre é o resultado da razão e do cálculo).

Grafite 0,7 mm, 6 × 6 × 0,3 cm, 2015

A série de Grafites de Ronald Polito brinca com a possibilidade aterradora de que aquilo que parece permanente, de um momento para o outro, pode desmoronar. Podemos pensar, se quisermos teorizar, que os Grafites sejam metáforas para a ideia de uma “contemporaneidade líquida”, ou mesmo do anúncio de Baudelaire para a arte da modernidade, de que “o belo é constituído por um elemento eterno, invariável, e de um elemento relativo, circunstancial”. Essa dualidade da arte moderna, que passa a existir como autoconsciência de todo artista, seria também a própria dualidade do homem, um ser que se constitui e que ao mesmo tempo se dirige para a derrocada.
Em uma entrevista onde comenta a relação entre sua produção poética e plástica (nota 1), Ronald Polito nos fala de seu interesse em estruturar seus trabalhos a partir do uso de poucos elementos, criando uma espécie de “economia radical” dos mesmos, buscando uma “clareza e simplicidade de apresentação”. Sabendo ou não, o artista está num diálogo direto com um dos escritos mais importantes de Maliévitch sobre o Suprematismo. Também, na mesma entrevista, chama a atenção para a natureza diagramática dos objetos, onde a sugestão é mais importante que a realização “realista” das figuras. E o mais importante: como o próprio material usado é significativo ao dar o sentido final ao objeto criado.

Grafite 0,7 mm, 6,7 × 6 × 6 cm, 2015

A vontade de fazer da obra de arte um objeto autônomo está na base da ideia de se criar um objeto que tenha consistência pela força interna de sua conformação. A indestrutível arquitetura da forma é que garante a possibilidade, inclusive, como oposição, de se pensar sobre sua fragilidade.
Não podemos esquecer, no caso da criação dos Grafites, de Ronald Polito, que a finalização da obra é resultado de um meticuloso trabalho artesanal que implica uma exigência do material sobre o artista e da tentativa do criador em submeter esse material ao seu absoluto controle.
Fazendo uma analogia, podemos pensar em James Joyce perdendo toda uma noite em claro com o único objetivo de descobrir uma palavra para terminar seu livro. A obsessão joyciana, que coloca o escritor numa posição de severa atenção em relação à “disposição da palavra na frase”, frase que ele busca domesticar a todo custo para não fazer ruir a arquitetura de seu romance, nos remete ao trabalho árduo de Ronald Polito em sua meticulosa artesania com os fragilíssimos grafites, prontos a se quebrar sob qualquer descuido e levar ao fracasso toda uma estrutura à beira de ser acabada.

 Grafite 0,7 mm e fios de cabelo, 7 × 1 × 0,9 cm, 2014


Esse cosmos particular que são os Grafites substitui a ideia de expressão pela de criação, já que é fruto do trabalho de um artista mais preocupado com a linguagem que com a representação do real. Isso torna o ato de criação uma poética da linguagem, materializada naquilo que Schöenberg e Stravinski dirão da arte, que ela deve ser “o estabelecimento de uma ordem nas coisas” e que “é justamente essa ordem que, uma vez conseguida, produz em nós uma emoção que nada tem em comum com nossas sensações correntes e com nossas impressões da vida cotidiana”.


Nota 1: Trecho da entrevista a Fabio Weintraub: “para além desses sentidos e outros afins, a percepção do paralelismo, da convergência entre imagem e textos pode ser de outra natureza, que me interessa também e mais, revelando que ambos se estruturam a partir de bem poucos elementos, que há uma economia radical, quase que de guerra, com as palavras e os materiais plásticos. Que em ambos se buscou alguma clareza ou simplicidade de apresentação. Também salta aos olhos o que há de equívoco e paroxístico em sua composição: pelo material usado, pelas proporções. E com sua natureza também de diagrama, que apenas a sugere, é homóloga a diversas passagens dos poemas como quase esquemas com sentidos ambíguos ou diversos. Também não é alheia a ideia de que, finalizando o trabalho, sugira que alguma coisa brotou do próprio material que serviu para a escrita dos poemas. Depois das palavras com o lápis num papel, sua materialização em coisas. Depois das interpretações poderia vir a transformação, o pôr as mãos à obra. E, aproximando a escultura mais ainda de alguns dos poemas, me parece evidente a intimidade que ela sugere, o pequeno mundo dos afetos, bem como sua delicadeza, que foi buscada em alguns deles. Se ela não tem paredes de proteção, tem telhado e sombra em que se pode descansar, no que se inclui parte móvel de seu espaço exterior. Penso que esses elementos mais internos sugerem melhor, em sua natureza formal, o rendimento que essa escultura possa ter em relação ao livro, são conexões mais gerais e estruturais com os sentidos imaginados para o conjunto dos poemas”.


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Abaixo, capa da plaquete Grafites, edição da Espectro Editorial, 2017, onde inicialmente foi publicado o texto acima.






domingo, 5 de março de 2017

O ROEDOR DE VERBAS DA CULTURA


JORGE COLI - Folha de São Paulo (05/03/2017)




Depois de gastos que atingiram mais de R$ 100 milhões, o Estado de São Paulo abandonou o projeto do Complexo Cultural da Luz. O governador Geraldo Alckmin (PSDB) atacou também a Fapesp e suas pesquisas inúteis, segundo ele "sem utilidade prática". No concreto, restringiu a dotação orçamentária daquela instituição. Dissolveu a Banda Sinfônica do Estado. Cortou, de maneira drástica, os orçamentos da Osesp, do Theatro São Pedro e de sua orquestra, assim como o da Jazz Sinfônica.


Não é preciso mais. Tudo converge. É uma valorosa cruzada sob o estandarte do obscurantismo. A crise é pretexto que funciona como desculpa. Cultura, conhecimento custam pouco ao Estado. Nelson Kunze escreveu, no site da revista "Concerto": "Pergunto: o que justifica cortes de mais de 40% em valores reais em uma realidade de queda de arrecadação que não atinge 8%? Por que impor esse estresse à cultura, cujo investimento consome menos de 0,4% do orçamento anual do Estado?".



Porque a cultura, o conhecimento, tornaram-se resíduos. No passado, eram atributos de classe. As escadarias e saguões cenográficos do Teatro Municipal, seus espelhos, formavam o lugar em que os mais ricos ofereciam-se a si mesmos como espetáculo. 

A classe média tinha também uma crença nos poderes, um pouco misteriosos, dos livros, das obras de arte, das ciências. Raras eram as casas que não possuíam uma estante de livros, por pequena que fosse.


Essa valorização, essas crenças, essas convicções simbólicas, diminuíram a ponto de se tornarem irrelevantes. Para quem, hoje, Beethoven é essencial? Para uma minoria insignificante. O Estado pode continuar roendo as verbas destinadas à cultura, o impacto eleitoral disso será mínimo. Mesmo a extinção de uma grande instituição como a Osesp não causaria indignação a muita gente. É verdade que, nesse último caso, há alguns santos fortes que a protegem, limitando os estragos. Mas é dado circunstancial.


O governo é pragmático. Trata de eliminar aquilo que interessa a pouca gente. Que o conhecimento e a cultura incorporem a inteligência de uma sociedade na escolha de seus destinos, quantos se importam com isso?


A Prefeitura de São Paulo decidiu perseguir os grafiteiros. Com eles, também os pichadores. Não estou convencido de que a distinção seja grande entre os dois. O grafite é elaborado, suas imagens são caprichadas, e consegue mais simpatia, mais reconhecimento como "arte", por causa do "bem feito". A pichação vincula-se à escrita, ao hieróglifo, ao grafismo urgente, à assinatura.



Tal como entendida hoje, a pichação sempre existiu, desde a Antiguidade: Pompeia está cheia de inscrições de nomes, datas, mensagens, desenhos sumários, tantas vezes obscenos. Quem faz a história da arte de rua contemporânea busca origens recentes no desenhinho de um homem careca com nariz comprido acompanhado pela inscrição "Kilroy was here" (Kilroy esteve aqui), que pipocou nos Estados Unidos durante os anos de 1940. 





Keith Haring criou uma grafia com seus bonequinhos; nisso está próximo do pichador. Pelo caráter sumário, tosco, de suas imagens, Basquiat deriva diretamente da pichação, que ele praticava. OS GEMEOS começaram pichadores, antes de adquirirem a grande celebridade como grafiteiros.

O grafite é mais domesticado, o picho –ou pixo– é guerrilheiro e transgressor. Ambos, porém, são manifestações artísticas. Arte que atinge um público muito vasto, que tem claro impacto político e exprime conflitos de classe. Arte que brotou em situações não artísticas de reconhecimento. O mercado das artes, que é tudo, menos bobo, já recuperou essas produções.




Mas os burocratas da prefeitura não entendem assim. Não é tão espantoso: os burocratas da Bienal de São Paulo também perseguiram na Justiça a pichadora que se manifestou contra aquela patética Bienal do Vazio. É triste.



Que grafiteiros e pichadores tenham que ser limitados pelos poderes públicos, não há dúvida. Há que se proteger monumentos e o que mais for. Sabendo conviver, ao mesmo tempo, com essas pulsões criadoras que brotam fortes com tanta energia.


São Paulo é um grande centro planetário da arte de rua e produziu alguns de seus mais brilhantes artistas. Aqui, a arte das ruas impôs imagens que, por assim dizer, tornaram-se clássicas. Um desses museus públicos era o túnel sob a avenida Paulista, que a prefeitura mandou apagar. Isso me parece mais bárbaro do que pichar o Monumento às Bandeiras, por exemplo. Porque o pichador está na coerência de sua transgressão subversora. Enquanto a prefeitura só está na coerência da sua inépcia.