quarta-feira, 24 de fevereiro de 2016

Jorge Coli
A Origem do Mundo:
Rituais litúrgicos



O quadro de Gustave Courbet, "A Origem do Mundo", de 1866, só foi exposto ao público em 1991. Até então, um número ínfimo de pessoas vira o original, que por isso guardava uma aura de mistério mítico. Seu último proprietário foi Jacques Lacan, dono de uma coleção importante de arte. "A Origem do Mundo", porém, não era mostrada: Lacan conservava a tela numa edícula, recoberta por outra tela, de André Masson. O psicanalista a exibia somente a alguns eleitos.
         James Lord e Dora Maar presenciaram uma dessas cerimônias. Sua descrição é reveladora: atitude grave ("A atmosfera podia ser tudo, menos alegre"); conversas em voz baixa, repetição da liturgia ("Depois do almoço, acompanharam-nos até uma construção fora da casa, onde ficava o ateliê de Lacan. Dora sussurrou: "Ele vai nos mostrar seu Courbet"); palavras sacramentais ("Agora, vou lhes mostrar algo de extraordinário"); rito de exposição, quando o proprietário retira o disfarce que cobre o quadro; enfim, resposta ritual do fiel ("Proferi as exclamações admirativas esperadas").

RELIGIOSO

Há um caráter religioso em tudo isso. É verdade que Courbet, ao eliminar a cabeça e os membros do modelo, concentrando-se no sexo, evitou tudo o que não fosse pura exposição. Transformou assim o espectador em puro contemplador, ou em contemplador puro. A imagem se impõe como evidência e permite a sacralização por sua essencialidade.
O vínculo entre obsceno e sagrado se tece graças aos laços entre os iniciados: é uma cerimônia religiosa, no sentido mais etimológico de "religare" (unir). Ora, exposição (de qualquer obscenidade) pressupõe a cumplicidade entre quem expõe e quem vê.
Há evidentes pontos de comparação entre o quadro de Courbet e uma foto contemporânea de Gouin: a inclinação da pose, a abertura das pernas. Se fosse reduzida ao sexo como a tela, teria, pelo teor documental da fotografia, algo de clínico. Mas o rosto que figura ali, o olhar fixo, a elegância afetada dos dedos na mão direita, transformam-na bastante. Tal como está, é uma imagem a ser mostrada entre cavalheiros, ao abrigo de olhares espúrios e, sobretudo, escondida de mulheres e de crianças.


O êxtase contemplativo cede lugar ao voyeurismo canalha. Mas a comunidade de iniciados permanece. A pequena fotografia viaja de bolso em bolso, é mostrada na palma da mão. O silêncio sagrado da encantação medúsica vem substituído então por outra atitude iniciativa: a risota cúmplice.
Há um ponto aqui: a diferença de olhares. Nas noções de "contemplar" e "êxtase contemplativo" pressuponho uma atenção involuntariamente muito focada, silenciosa. É o que pode ser chamado de fascínio e adoração, repousando sobre fé sincera e, em vários aspectos, respeitosa. Outro olhar, que se pode chamar de "cumplicidade canalha", tem no riso, na piada, um sinal de conivência.
Há mais um ponto comum entre a foto e o quadro: nenhum homem está presente. Eles são previstos como espectadores, externos à ação erótica. A fenda oculta um mundo desejado e sequestrado, secreto e promissor, mas se mantém sob autoridade feminina, seja de modo "ôntico", seja em modo de comércio. Revela-se como posse íntima das mulheres, velando os mistérios que não podem ser vistos, apenas intuídos pelo prazer imaginário dos homens.
Um quadro dos anos de 1820 pode nos fazer avançar na reflexão. É atribuído ao círculo de Achille Devéria (1800-57), talvez seja mesmo de sua mão. Uma jovem, quase adolescente, mostra o traseiro.
A perna esquerda, apoiada num tamborete, dobra-se, de modo a afastar as coxas e a revelar a vulva, desprovida de pilosidade. O rosto se volta para o espectador. Tal iconografia é rara. O tema calipígio é frequente nas artes, mas aqui a situação, a pose, a visão simultânea das nádegas e da vulva, ao contrário, é incomum.


A tela pequenina impõe uma análise diversa das feitas a Courbet e Gouin. O artista não exibe frontalmente a vulva. Põe em evidência a beleza das nádegas, pintadas com carinho. O olhar é atraído primeiro por elas. Descobre-se depois o sexo na penumbra do entrepernas. Não se vê o homem que, supomos, deve usufruir da penetração, mas ele está presente, assinalado pela cartola sobre a cadeira, no primeiro plano.
Se no quadro de Velásquez o contemplador ocupa o lugar do rei, para evocar o conhecido texto de Michel Foucault, aqui ele ocupa o do fodedor. A seminudez da jovem indica que a relação é fugidia, apressada. Afora a cartola, não se veem roupas masculinas: o homem deve estar vestido.

 FOTO

Não foi difícil encontrar na internet uma foto obscena que tivesse analogia com o quadro em questão. Sem contar as vestimentas e a pose, que acentua a abertura e a visibilidade da vulva e do ânus, Megan Bubble Butt, como vem denominada, mostra o traseiro (desmedidamente ampliado pela lente do fotógrafo). Como a jovem de 1825, volta para o espectador os olhos amendoados.


Seria possível, num primeiro momento, que o caráter elaborado da tela e o aparente imediatismo da foto servissem como critério para estabelecer uma distinção entre "arte" e "pornografia". Mas não.
A tela certamente entraria na categoria pornográfica pelos critérios do século 19. O tempo a transformou, porém, e hoje ela poderia ser exposta a qualquer público. Ora, a foto de Megan, disponível para qualquer olhar na internet, poderia integrar a obra de um artista contemporâneo.
Minha convicção é que a precisão conceitual neste caso não é de rigor. O importante é a fecundidade do processo comparativo: uma imagem ao lado da outra permite aguçar a inteligência do olhar, e a melhor intuição e compreensão dos fenômenos culturais e estéticos que elas envolvem.

MANET

Ponhamos o pequeno quadro de Devéria em paralelo com "Olympia" (1863), obra de Manet. O ponto em comum é que, como em tantas obras do artista, o espectador está pressuposto: como em Velásquez, como tantas vezes no barroco, quem olha se incorpora à obra.


  No entanto, com "Olympia", não se trata do "lugar do rei", nem do "lugar do fodedor". Trata-se do "lugar do cliente". O sinal de sua presença está no buquê de flores, no gato arrepiado diante do estranho, no olhar do modelo, e, ainda, no gesto de sua mão esquerda.
É importante analisar esse gesto. Ela tapa o púbis com a mão espalmada, de modo decidido. Gesto "profissional". O cliente chegou, ela está nua; expõe-se, mas esconde o ponto mais desejado, suprema moeda de negociação.

COFRINHO

A fenda de Danae transformou-se em cofrinho quando ela foi penetrada pelas moedas de Zeus. Com a mão, Olympia bloqueia (temporariamente) a sua. O olhar concupiscente devora promessas, mas tem seu limite: o da passagem que dá acesso à moeda metafórica, ao pênis real. O pênis ereto figura o prazer masculino, externo, exposto. Já a interioridade feminina mantém-se inacessível à representação. Nenhuma das vulvas escancaradas da arte, ou infinitas na fotografia pornográfica, dá conta da representação.
Como o desejo feminino é interno, sua porta de entrada é ao mesmo tempo barreira visual. Sua exibição é o atestado do prazer invisível, dos mistérios invisíveis.
Da origem do mundo à origem do fogo, o ventre é o lugar invisível dos mistérios e dos prazeres. A contemplação do sexo feminino pressupõe e impõe esses mistérios. Seria mesmo necessário tratar a pornografia como um conceito? Há uma distinção convencional entre erotismo e pornografia que atribui à natureza da fotografia os males da pornografia contemporânea.
Barthes o expôs em "A Câmara Clara": "A foto me induz a distinguir o desejo pesado, o da pornografia, do desejo leve, do desejo bom, o do erotismo". Parafraseando Alain Robbe-Grillet, o desejo pesado é naturalmente o dos outros. O nosso é sempre o bom.
Pornografia é menos um conceito que um insulto, um preconceito. No mundo interminável dos desejos intensos que é a internet, as imagens licenciosas são infinitas. Trata-se de desejos inefáveis, intangíveis, "virtuais" (do latim "virtus", que também dá origem, numa gênese paradoxal, à palavra virtude), ou seja, existindo apenas em potência e não em ato, como sonho e irrealidade. Imagens que alimentam, e se alimentam, dos desejos humanos. Exatamente como as obras de arte.

Se tivermos mesmo que situar a pornografia num campo conceitual, este deve se localizar na moral, e não na estética ou na arte. Na estética, na arte, grandes ou pequenas obras, "altas", ou "baixas", nobres ou vulgares, podem corresponder entre si, e iluminarem-se mutuamente.