terça-feira, 2 de setembro de 2014

Heidegger visita a peça “Recordações do tempo em que tinha boca”

Heidegger visita a peça “Recordações do tempo em que tinha boca”, de Aguinaldo de Souza


Por Jardel Dias Cavalcanti

A morte enquanto indagação filosófica foi o tema da instigante peça “Recordações do tempo em que tinha boca”, sob direção de Aguinaldo de Souza, apresentada no Filo (Festival Internacional de Londrina).
Livremente inspirada no cinema de Charles Chaplin e no livro “Intermitências da morte”, de José Saramago, a peça faz do corpo o principal instrumento de comunicação. Os recursos cênicos são mínimos justamente por isso, para que a mímica nos transporte para uma situação absurda, a da relação do homem com sua mais terrível e única certeza: a morte.
Não podemos deixar de pensar na filosofia de Heidegger durante a apresentação da peça. Para o filósofo alemão, o homem é um ser jogado no mundo, abandonado à sua precariedade, perdido e mergulhado na angústia de sua finitude. Seu próprio ser é indefinido, sendo sua convivência com os outros e com as coisas incerta e precária. Na busca por apoio, encontra apenas a terrível certeza de que a morte é inalienável. Imprevisível, mas certa, a morte é assustadora. Quando chega, é implacável e inadiável na destruição do Ser. Portanto, para Heidegger, o homem é um ser-para-a-morte.
A peça de Agnaldo de Souza trafega nesta certeza. Os atores vivem ou em situação de repetição absurda de seus gestos, como um Godot a espera de nada, ou em momentos de desequilíbrio e impossibilidade de afirmar qualquer razão para a vida. A cena mais dramática nesse sentido é a da atriz passando de um sapato de salto alto a outro, se calçando num desequilíbrio permanente.
Outro momento forte da peça é quando a lista de mortos anunciada é constituída de nomes de pessoas da própria plateia.  Esta estratégia aproxima a angústia da morte de todos, destruindo o distanciamento que a condição de espectador possibilita. O riso amarelo da plateia revela o resultado positivo da estratégia.
Voltando ao corpo dos atores: eles falam mais do que tudo. Lucas, Paula e Tainara chaplinianamente tornam nossas ações cotidianas desprovidas de heroísmo, calcadas em repetições sem sentido, desprovidas do sublime. Comer, passar o dia nas redes sociais, se enfeitar. Estratégias para a fuga da certeza inabalável da morte? De nada adianta, é o que a sôfrega e caricata representação de nossos gestos pelos atores nos comunica a cada segundo da peça.

O teatro nos devolve a autenticidade da vida. Como dizia o próprio Heidegger, “a linguagem é a morada do ser”. É na linguagem que as coisas ganham sentido, lugar da abertura das possibilidades para o restabelecimento do ser autêntico, aquele que nos manteria preparado para a própria morte.