quarta-feira, 2 de abril de 2014

Paulo Sérgio Talarico

DUAS SÉRIES:
porteiras e fogões

Por RONALD POLITO


1.

Há mais de uma década, Paulo Sérgio Talarico tem frequentado a tópica por excelência recorrente das artes-plásticas em Minas Gerais: a representação de suas montanhas, fazendas, campos e cidades do interior, reais ou não, em paisagens rurais ou cenas urbanas que remetem a lugares reconhecíveis ou puramente imaginados. Se essas representações apontam uma leitura particular da tópica, o que aqui não será abordado, elas de qualquer modo se balizam pelos elementos consagrados na área.
            Não é o caso de duas séries que têm se firmado no campo de suas pinturas. Refiro-me aos quadros de pequenas dimensões que nos apresentam, de um lado, porteiras em estradas rurais e, de outro, fogões de lenha. Uma opção por isolar uma parte capaz de representar o todo. A força de uma tentativa desse tipo será tanto maior quanto mais intensa for sua capacidade de magnetizar, atrair para si os diversos atributos do todo a que quer se referir. É esse, me parece, o caso dessas duas figurações: os fogões e as porteiras.
            Talarico está pisando em terreno novo. Desconheço, nas representações e tópicas sobre Minas Gerais, obras de artes-plásticas que nos apresentem esses elementos isolados de seus contextos. Trata-se, assim, de um movimento mais imprevisível, de invenção de novos recortes capazes de apresentar do outro modo esse imaginário rural e da vida no interior agrário.
            Dizer que fogões e porteiras remetem a Minas Gerais é, no fundo, um reducionismo, aqui só compreensível por sabermos de dados biográficos do autor e pela semelhança que as imagens guardam com objetos do mundo real e presentes nessa parte do território brasileiro. Mas é possível, naturalmente, não se ater a essa moldura e tomar essas figurações como representações de uma realidade mais ampla, a do país. Ou mesmo de todos os países agrícolas e periféricos no cortejo mundial, quando essas imagens alcançam latitudes antes impensadas.


2.

As porteiras ou cancelas são como que uma conclusão lógica, uma redução ao mínimo, do que já vinha se manifestando nas paisagens montanhosas do autor. Em diversas paisagens, bem como nas landscapes (que são um subconjunto dessa tópica), que nos apresentam especificamente recortes rurais e semirrurais, tornou-se notória a presença de grandes porteiras em primeiro plano que, geralmente, servem como moldura a partir da qual o espectador descortina, por trás delas, a circunstância geralmente bucólica que resguardam. Como moldura dentro da moldura, elas funcionam como lente de aumento, como seleção e recorte privilegiador do que é mais importante a ser reconhecido. Diga-se, ainda, que não são porteiras, por vezes de currais, eventualmente presentes em representações de casas-grandes mineiras que incorporam seu entorno, pátios e pomares. São porteiras de estradas de chão, demarcando limites de propriedades, povoados, definindo território. E, aos poucos, elas foram se autonomizando até que surgiram como o elemento a ser destacado.


Sem título. Acrílica sobre tela, 40 x 10 cm (detalhe). [2002].

            Cercar, dividir, resguardar, preservar: silenciosas e fechadas, essas porteiras servem para barrar o observador inoportuno, o invasor do que deve se manter na privacidade. Apenas uma grande casa à direita indica a ocupação humana, nenhum bicho, nenhuma flor. Casa recolhida e preservada pelas montanhas e pelo céu que a cercam. Montanhas e céu em profunda harmonia. Numa pintura que é também desenho (principalmente dos repertórios dos quadrinhos) nos delineados e simula se aquarelar nas vegetações, tipos de técnica e linguagem que o autor há décadas vem transferindo para a tela. Essa opção sobrecarrega a cena com uma dimensão infantil, lúdica, acentuando o que uma imagem pode conter de ilustração.
            Este é um tipo diferente de locus amoenus: desprovido de fontes, de ninfas, do repertório usual, põe em seu lugar apenas porteiras, montanhas, casinhas, o vocabulário reduzido aos naïf. E as dimensões pequenas dos trabalhos igualmente são adequadas ao tema.

elementos mais primários, capturado por um lirismo que lança mão dos rabiscos da infância. As cores quentes, vivas, a superfície homogeneamente ensolarada, na maioria das imagens, confirmam essa organização em torno do básico, por pouco



Sem título. Acrílica sobre louça, 20 cm/d. 2010. Coleção Henrique Teixeira.

            Por vezes, a orientação de cores é outra. Como no caso desse quadro em tons terrosos, quase monocromático, como se citasse o sépia de certas fotografias envelhecidas ou transmutasse em desbotamento o que o tempo fez com a pequena vila apresentada num fim de tarde.



Sem título. Acrílica sobre cartão reciclado, 30 x 20 cm. [2002]. Coleção Valéria Jucá.

            A vila repousa em absoluto silêncio, nenhum movimento. Nada está sendo ou será construído aí, ela está pronta e acabada. E a porteira é sólida, três pranchas largas em mourões pesados. O "mesmo" lugar recebeu nova apresentação, agora se colorindo um pouco mais,  mas o tom de desolação, de vida parada, permanece intacto.

Sem título. Acrílica sobre cartão reciclado, 40 x 30 cm. [2002].

            Como síntese da tópica, redução máxima, a tela seguinte é uma das melhores realizações do conjunto, cuja meta parece ser o estado de contemplação onírica. Nela apenas a porteira e a cerca indicam claramente a presença e a posse humana, afora os pastos. E o pequeno monte à direita oculta, antes que a curva da estrada suma, tudo o que nossa imaginação pode supor por trás dele, incluindo o vazio. O local ameno guarda suas fraturas, seu desgaste. Mas a degradação se encontra paralisada, o que permite a figuração amistosa, uma promessa de paz, que aparentemente não nos pertence, ainda que possamos experimentá-la do lado de cá porteira.



Sem título. Acrílica sobre tela, 40 x 20 cm. [2002]. Coleção Adalberto Queiroz.

            Esta última tela, a de melhor realização das que conheço com as porteiras, com exceção da tela com tons terrosos, abandona os traços de algum modo mais juvenis das que reproduzi. E repete praticamente todos os elementos da anterior, mas com outra abordagem. As cores aqui se aprofundam, algo outonal ou mesmo invernal está presente. E se nas anteriores os delineados as aproximam de certos padrões de ilustração, nessa o resultado é diverso, precisamente porque eles deixam de ter essa propriedade ilustrativa ao adquirir mais substância. São contornos grossos, demarcando grandes volumes de terra ou vegetação apenas sugeridos, talvez caulim no barranco branco, que se espalha pelo chão. Eles intensificam com certo expressionismo as escolhas cromáticas rebaixadas desses volumes da tela, algo melancólicas ou frias. E os movimentos sinuosos e velozes de barrancos, matas e porteira conferem alguma intempestividade à atmosfera.


Sem título. Acrílica sobre cartão reciclado, 45 x 35 cm. 2006. Coleção Helô Barbosa.

3.

Os quadros com os fogões de lenha e suas cozinhas são mais radicais. As porteiras foram um recorte inteligente, mas de um repertório dado. No caso dos fogões de lenha a operação é mais conceitual, alegórica, imprevista. É importante notar o quanto é pequena nossa iconografia dos pobres e envergonhados interiores de casas-grandes e outras moradas rurais, o que talvez "justifique" sua pouca frequentação. Mais ainda se contrastada com a grande quantidade de representações de fazendas do país, com seus pomares, cercas e criações, em telas, aquarelas, desenhos e gravuras.
            Como objeto imaginado capaz de atrair outros, o fogão de lenha aqui ocupa o centro para se apresentar a moradia, a habitação, de forma despojada, às claras. Outros cômodos da casa seriam talvez redutores: a sala de visitas com sua sociabilidade interessada, os quartos e sua intimidade supostamente indevassável... A cozinha é onde todos se encontram, onde as hierarquias estão mais afrouxadas, e é incontornável.
            Casas, cozinhas e fogões são, no entanto, mais determináveis. A escolha é pela cozinha espaçosa, com quase sempre o mesmo grande fogão de fazenda, a janela dando para o pasto extenso, o dia ensolarado e homogêneo lá fora, os interiores em amarelo algo melancólico, com o observador situado no cenário. Esses são os elementos usuais.


Sem título. Acrílica sobre cartão reciclado, 40 x 30 cm. [2002].

            As linguiças penduradas, as galinhas complementam uma cena típica do interior do Brasil. Mas essa atmosfera pode ser perturbada por presenças menos comuns. No caso, o quadro do possível casal da casa, que seria mais de se supor em outro lugar.

Sem título. Acrílica sobre tela, 70 x 50 cm. 2013. Coleção Helô Barbosa.

            Essa mesma organização geral pode ser notada em outros trabalhos. O seguinte é particularmente perspicaz com a utilização da almofada de uma porta ou janela, da mesma natureza das que estão pintadas na própria imagem, como suporte, tornando a "tela" tridimensional. Note-se que esse material vendo sendo usado há muito tempo por Talarico, modo de forçar os limites entre dentro e fora e entre duas e três dimensões. O efeito ótico é de inversão, a cozinha passa a estar "encaixada" num cenário que apresenta o teto e as três paredes em torno. Mas também de duplicação, porque a perspectiva pintura é diversa da e concorre com a perspectiva sugerida pelo facetamento, desestabilizando a posição do observador em seu interior. Outra vez, a presença de quadros nas paredes, que aqui replicam confirmativamente o "quadro" que a janela emoldura, e que informam sobre um padrão de uso, um ambiente cultural e um ideal de natureza.

Sem título. Acrílica sobre almofada de porta, 95 x 25 cm. 2010.

            Na tela seguinte, fazem-se mais presentes elementos incomuns. os candelabros com as velas ao lado do fogão, o espelho refletindo a vela e a cadeira com braços atrás do fogão, como se pertencessem a outro ambiente doméstico. Também a taça causa certa surpresa, pois não é usual como são o queijo curado na beirada do fogão, o bule e a caneca ou leiteira. Uma cozinha, então, que reúne elementos de outros cômodos, sintetizando toda a casa que possui traços de requinte aristocrático e frugalidade, e de novo estamos posicionados dentro dela, olhando o fogão de perto e de cima, e parece que estamos sozinhos. Em todos os trabalhos, a mesma ausência, nenhum ser humano, exceto o observador, com poucos elementos que suponham alguém ter estado ali presente há pouco tempo ou que venha novamente estar, a taça apenas. As mesas, quando há, estão bem arrumadas, sem vestígios de uso, os fogões e espaços trazem poucos alimentos e se encontram arrumados, em repouso e alheios a nossa curiosidade.


Sem título. Acrílica sobre tela, 70 x 50 cm. 2012. Coleção Leila Bara.

            O fogão de lenha parece ser, então, uma espécie de natureza-morta, por vezes até ladeada por arranjos florais, outras naturezas-mortas na cena, e também entra em atividade, tornando a presença humana mais próxima.



Sem título. Acrílica sobre tela, 70 x 50 cm. 2013. Coleção Cláudia Soares.

            A natureza-morta em primeiro plano, citando Van Gogh, bem como as outras em terceiro plano, mundanas, da roça, desencantadas de seus atributos usuais de requinte, mas revelando uma cozinha festiva ou mesmo alegre, não conseguem nos desviar do principal, as panelas no fogão tosco, ensebado, desses cimentados e pintados com muito pó xadrez. Mas com forno. E sempre a cadeira e a mesa, numa cozinha espaçosa onde cabe muita gente.


Sem título. Acrílica sobre tela, 70 x 50 cm. 2012. Coleção Faustino Teixeira.

            Um território amigável, com a lenha acesa, o coador de pano a postos, o céu da paisagem incorporado ao espaço interior, nas janelas, no jarro da mesa e nela própria, os quadros na parede aumentando a intimidade da circunstância. E o cão se aquecendo torna tudo ainda mais hospitaleiro, convidativo.


4.

Duas séries que dialogam com as tradições das paisagens e das representações rurais, tentando sintetizá-las a partir de elementos aglutinadores, capazes de pôr em ação um conjunto de referências. A reuni-las, o tom intimista, a posição contemplativa do observador, o silêncio, a falta de movimento, a luz diurna clara e homogênea, a linha negra do desenho definindo as regiões das cores, a presença humana por suas obras. Nas porteiras, o sistema de posse retificado, o paraíso meio decaído, privado e isolado. Talvez por isso mais convidativo à divagação do olhar. Nos fogões a lenha, a sociabilidade manifesta, a cozinha como centro da casa, lugar para o encontro e a conversa, a feitura dos alimentos e sua partilha, do íntimo e do coletivo reunidos. Do conjunto, ao qual se agregam outras séries do autor, sobressaem o desejo de apresentar os ambientes naturais e rurais como possibilidades do espairecimento, de devaneio bucólico, de convívio afável. E por meio de figuras reduzidas ao mínimo (porteira, casa, montanha; fogão, janela, mesa), exacerbado por sua estilização de desenho. Curiosa operação de redefinir e reposicionar os dados que pertencem a um imaginário coletivo, a vida nas montanhas em pequenas comunidades e em estado de isolamento, encontrando alguns elementos capazes de remeter a essa combinação particular de relações históricas, sociais, culturais e afetos da memória. Eles se alimentam de nossas vivências da infância, reais ou imaginárias, e propõem recortes imaginativos das circunstâncias da vida interiorana, que correspondem às suas melhores condições diante de um entorno ameaçador.

Ronald Polito

março de 2014

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