quarta-feira, 19 de março de 2014


GALINHADA PARA TALARICO
Ronald Polito



            As galinhas entraram em nossas vidas muito antes que pudéssemos imaginar. Bichos de nossa intimidade, desde sempre na Arca, dispensam apresentações. De minha parte, creio que elas passaram a pertencer definitivamente a meu imaginário quando eu tinha uns quinze anos de idade e era leitor da revista Mad. Num daqueles números antológicos, um cartum com galinhas, que suponho de Don Martin, tornou-se para mim uma lembrança permanente ao longo da vida. Nele podíamos ver duas enormes galinhas nas salas de um museu observando telas clássicas, tipo Rubens ou Rafael, com um pé semierguido, a cabeça levemente inclinada, contemplando, e bem interrogativas. Uma cena que valia por tomos e tomos de sociologia da arte. Se não era de Don Martin, nenhum problema, mas se citei o cartunista brilhante foi para indicar uma das influências mais importantes e permanentes que Paulo Sérgio Talarico recebeu em sua formação, não apenas pelo traço, como também pelo humor.

E a galinha é um desses assuntos que parecem estar necessariamente ligados ao cômico, ao satírico, ao ridículo, mesmo que isso não esgote suas representações. Digo isso pensando na iconografia e em como a galinha surgiu e se destacou. Geralmente ocupou uma posição coadjuvante em cenas rurais e semirrurais da pintura da época moderna e novecentista. Entre outros bichos, figurava compondo o cenário do quintal ou terreiro. Ou poderia estar pendurada ou sobre uma mesa, morta com outras aves e caças, em outro gênero de pintura (por exemplo, em telas de Gustave Caillebotte). Mas, aos poucos, elas passam a ser apresentadas isoladamente, chocando ou ciscando, em pequenos bandos, ao lado de galos, sozinhas ou com a ninhada, em miniaturas ou telas a óleo de pequenas dimensões, próprias ao tema. Pode-se imaginar a surpresa que essas pinturas provocaram na época, talvez semelhante à estupefação congênita das próprias galinhas, pois foi necessário um longo percurso de deslocamento de valor do representável para que se chegasse ao consumo das imagens de cada um dos animais. De qualquer modo, o que temos nessas pinturas é uma tentativa de conferir certa gravidade às galinhas, bichos domesticados captados em pouco ou nenhum movimento, com um enquadramento e tratamento de cor e luz acadêmicos.

            Uma galinha, contudo, não tem nuances. É muito fácil saber o que é e o que não é uma galinha. Não há como sustentar durante muito tempo uma apropriação épica ou trágica de uma galinha. Exceto nessas espécies de memento mori que são as telas lúgubres com bichos mortos em cozinhas, fadadas ao sucesso contemporâneo, em que a escatologia, o bizarro e o feio estão entronizados. Ou queimando-as vivas em praça pública, como fez Cildo Meireles em 1970.

            Mas, logo em seguida, nós podemos vê-las situadas em seu território por excelência, que é o do cômico e suas derivações. Evidentemente, este é um investimento de sentido nosso. As próprias galinhas não são assim ou assado (sem trocadilho). São nossas construções do que seja o risível, o ridículo, o absurdo, o irônico, o patético etc. que escolhem no mundo sensível aqueles elementos capazes de apresentá-las. E as galinhas encontraram seu próprio elemento quando se viram representadas em um sem-número de trabalhos de cartuns, das histórias em quadrinhos, das charges, dos desenhos animados. Este é um universo, se comparado à galáxia da pintura. O que de melhor as galinhas podem nos dar talvez seja nos fazer rir.

            Essa é a opção de Talarico, que há muito tempo se apoderou das galinhas como um de seus temas mais recorrentes. Ele também fez diversos galos, mas aqui só vou tratar delas. Sozinhas ou em bandos, com suas crias, em pequenos suportes diversos como telas, almofadas de janelas e portas de demolição, pratos, cubos, em desenhos em papel, cartão, cerâmica, em pinturas, o artista flagra o bicho de diversas perspectivas, geralmente cômicas, mas não apenas, pois há um lirismo delicado em suas obras.


Acrílica sobre cartão reciclado, 45 x 30 cm. 2012.

            Ela acaba de fazer seu primeiro movimento para seguir em frente, esticando o pescoço, e para por um segundo, o que sempre parece uma falha de funcionamento, uma isquemia cerebral intermitente. Nesse exato instante, o artista a paralisa em sua aparente hesitação. A cabeça diminuta em relação ao corpo agigantado parece ampliar sua ignorância sobre para onde vai, ressaltada no olho esbugalhado mirando um ponto muito acima do observador. Uma galinha-botero. Poderosa, no entanto, meio como uma desconjuntada ou obsoleta máquina de guerra, ela empurra com as costas o céu e pisa firme o chão pouco animador que tenta desestabilizá-la, apropriando-se de todo o espaço: entre o céu e a terra há uma galinha.

            Em seus movimentos quase mecânicos, reduzidos, na pobreza de sua expressão corporal escorregadia (talvez por isso exitosamente incorporável a performances), com seu pé meio que esquecido erguido no ar, seu par de olhos vitrificados e distantes, a crista como que autômata e sempre nervosa, a galinha é a própria materialização das incontáveis dúvidas, geralmente estúpidas, em que podemos perder grande parte de nossa existência. Ela titubeia entre hipóteses, destinos, que supõe existirem. Ela nunca sabe para onde vai, nunca sabe se vai, nunca sabe-se.

Lápis sobre papel. [1998]. Coleção do autor.

            Com sua operosidade restrita, que é sempre a mesma, o afazer cotidiano de ciscar, ciscar, ciscar horas a fio, a galinhada nos humaniza, presos ao pasto cotidiano, quando deixamos de prestar atenção até em nós mesmos.


Acrílica sobre cartão, 100 x 80 cm. 2011. Coleção Cristina Couto Guerra.

            E com a falta de cerimônia ou ingenuidade típica de quem nunca se imagina notado, elas se esquecem da vida apontando com garbo seus rabos para o alto, a galinha branca com pernas deselegantemente bem abertas, no centro do quadro, para você que a está vendo. Esse centro onde se encontra a maior parte do alimento e que está coberto por seu corpo, cujo centro é seu rabo... O trabalho, portanto, não é sutil, mas pode passar despercebido. Como o pescoço pelado roxo da galinha com crista bem vermelha em primeiro plano. E tão senhoras, grandes galinhas poedeiras criadas soltas.


Acrílica sobre cartão reciclado, 35 x 25 cm. 2000. Coleção Helô Barbosa.

            Esta galinha d’angola, tão satisfeita de si, para e posa lateralmente para ser flagrada, certa de sua beleza exótica, a distinção de suas penas nesse lado do Atlântico. Seu olho e bico produzem um sorriso ambíguo como o de Mona Lisa?



Acrílica e tinta de parede sobre cartão reciclado, 40 x 30 cm. 2000. Coleção Helô Barbosa.

            Essas três nos conduzem a um lugar mais conhecido. Estamos com certeza em um terreno humano, já que estamos falando de galinhas. Que são muito falantes. A imagem é do tipo que nos leva a um sorriso à socapa. A vermelha, tão convencida de si, alteada, apenas acabou seu comentário com ares de ingenuidade, mas falsa porque é má atriz, sendo claramente questionada pela galinha do centro, que, por uma leve confusão ótica provocada por seu rabo, parece por um instante estar com a mão na cintura. A observação dela parece contundente, que dispensaria qualquer comentário a mais. Mas há: o golpe de misericórdia é dado pela galinha do fundo, que passa ao largo e sibilinamente acrescenta outra observação crítica.

            Galinhas têm mil e uma utilidades. Por exemplo: esta definitivamente humanizada como gorda galinha-sarney dos ovos de ouro, com o grande ovo do Congresso partido ao meio, oferecido. A cabeça ovo parece insistir no poder da reprodutibilidade dos ovos, calma e diligentemente chocados com bastante brilho, que recobre inclusive suas penas e rabo, mesmo sob um céu não muito amistoso. E, à diferença da fábula, essa galinha não tem dono.

Desenho e Photoshop. Charge no Jornal do Sol (Porto Seguro, 2004).

Esta chester um pouquinho acima do peso, poedeira, apresenta ao público curiosíssimo seu ovo-troféu, motivo de todo o orgulho de sua pose e fisionomia


Sem título. Desenho. [2000]. Coleção do autor.

            As galinhas também têm sido exploradas em outros suportes, como dito. Um deles é a cerâmica, no caso, o haku. No gênero da pintura de pratos, Talarico optou por utilizar esse prato “disforme”, “oriental”, de pequenas dimensões e espessura, no qual grava seus desenhos que depois são queimados. A forma inusual combina com a temática um tanto inesperada: uma galinha passeando com suas crias, vigilante.

Sem título. Haku, 18 x 12 cm. 2013. Coleção Ricardo Salomão.

            Outra experiência com desenho sobre cerâmica são esses cones também em raku. No menor, destacamos essa franga de peito estufado, crista ao alto, que parece rir. No maior, o pintinho ciscando/treinando, protegido entre duas galinhas.

Sem título. Haku, 10,5 cm x 4 cm/d; 14,5 cm x 4,5 cm/d. 2013. Coleção particular.

            Mas o trabalho mais surpreendente com o tema das galinhas é um pequeno cubo de madeira com suas facetas pintadas, recentemente realizado. Ele, de certo modo, pertence a uma série de cubos e pequenos mourões de madeira que há anos são transformados em prédios ou casas por Talarico, explorando a tridimensionalidade do suporte e em diálogo com obras de cerâmica mais típicas desse tipo de representação. Mas nos casos das peças de madeira a similitude é alta entre a forma geométrica e as moradias. Não é o que ocorre com o cubo que passo a observar, pois ele se organiza em outros termos.


Sem título. Acrílica sobre madeira, 7 x 7 x7 cm. 2014. Coleção particular.

            A imagem quase reproduz o tamanho original, um cubo com cerca de sete centímetros em cada aresta. Nele Talarico pintou com acrílica a mesma galinha vista por quatro lados e de cima. O cubo é um pedaço de madeira usado, velho, difícil imaginar sua anterior serventia. Mas as marcas de prego não deixam muita dúvida de que teve algum emprego.

            Estamos diante de uma pintura, mas que é também “escultura”. E que não tem frente e verso previsíveis, já que a imagem da galinha de frente não está na posição diametralmente oposta à imagem dela de costas. Ou seja, a observação do objeto pode ser iniciada em qualquer faceta, pois não há um início e um fim previstos. Sem saída ou entrada, leio-a em certa ordem, “dramatizando-a”.


            Pega de surpresa, ela levanta as asas como se respondesse ao comando de “mãos ao alto”, ao mesmo tempo que mantém as pernas abertas e paralelas enquanto é alvejada por dois poderosos disparos, um que atinge levemente seu ombro esquerdo, outro em baixo da asa esquerda, nenhum dos dois letal. Mais que assustada, sua cara denota perplexidade diante do que está acontecendo.


            Ao se virar tentando escapar pé ante pé, tem de enfrentar uma situação sísmica que ameaça fraturá-la. Mas não há mesmo saída. Tentando escapar de foram atrapalhada, vira-se integralmente, dá uma volta de 180 graus, o que é seu primeiro erro fatal.


            É atingida por quatro balaços de espingarda, do tamanho de seu olho, e um passa por cima. Dois tiros são mortais, os outros do rabo ainda lhe permitiriam sobreviver. Numa última tentativa de escape ela se volta de costas, o que é seu segundo e último grande erro e sua pior ideia...


            O disparo derradeiro, as pernas agora um pouco abertas, ela vai arriar, mas se vira ainda para ver a queda e seu alvejador. E diferentemente dos buracos reais das outras facetas do cubo, este buraco negro como que com respingos de sangue em volta foi pintado. O autor assina a morte e põe um ponto final.
            A coda é a parte de cima do cubo.

            Quando nosso olhar fura a tela d’água, mergulha no cubo e descobrimos sua quarta dimensão. A madeira serrada de forma tosca é um mar de ondas provocadas pelo deslocamento do corpo da galinha inesperadamente aquática e submersa, muito focada, como sempre indo sem que saibamos para onde, como uma lontra, ou um caramujo. Existe outra vida, tudo está salvo.

            Há um erotismo provocativo, debochado, nesses rabos levantados, nessas partes pudendas tão à mostra. Que até brinca com a pornografia e a escatologia. E não poderia ser de outro modo, afinal estamos falando de galinhas. E há a contraface disso tudo, o cuidado, o carinho com a cria, e o cotidiano atarefado com encher a barriga. Tudo muito básico, bem próximo da experiência humana diária.

Ronald Polito

março de 2014