sexta-feira, 26 de julho de 2013

Depressão, mal do século XXI

Depressão, o mal do século, artigo de Montserrat Martins


Na área emocional, o mal do século XXI é a depressão, como a histeria foi o mal do século XIX. Sabe-se que a histeria era comum na era vitoriana, de repressão sexual, mas depois das mudanças culturais do século XX se tornou rara na Europa. Mas quais as causas da depressão, agora, como um fenômeno social? Qualquer transtorno tem causas biológicas, psicológicas e sociais. Entre os múltiplos fatores, no caso da depressão como o ‘mal do século’, destacam-se os sociológicos.
Como todos os transtornos, são mais frequentes na população de baixa renda, mas no caso da depressão não é só o estresse das dificuldades financeiras, são também as humilhações que as pessoas sofrem na vida cotidiana, no trabalho e no próprio convívio social. Faltam pesquisas sobre algumas questões específicas, mas é previsível por exemplo o efeito das propagandas de automóveis de último tipo e produtos de luxo na televisão sobre pessoas que jamais poderão adquirir esses bens. Muitos adolescentes internados na FASE praticaram algum roubo de carro não para revender, mas para dirigir e passar com ele na frente de garotas, como demonstração de status, de poder, para se sentirem ‘importantes’, validados por elas.
Outros fatores sociológicos vão além da condição econômica, atingem a todos os grupos. Estamos no século da sociedade de massas, das multidões, da anomia, da falta de identidade, diante da necessidade de adaptação às tendências mutantes dos grupos sociais. A própria difusão de drogas como o crack e a cocaína, de efeito euforizante, é um dos sintomas dessa era. O culto ao ‘celebritismo’ também, bater fotos com celebridades é uma forma de ser “alguém” – não importando que tipo de fama a pessoa tenha, porque o ‘celebritismo’ não requer valor intrínseco. Sendo que o mais almejado modo de atingir os “15 minutos de fama” é aparecer na TV, vem daí o sonho de milhões em ir para os BBBs da vida.
Nesse mundo massificado em que as pessoas medem o próprio valor por consumo e status, em detrimento das próprias qualidades humanas, aqueles cujo trabalho é atender aos outros passam a ser cada vez mais atingidos por estresse. É o caso da chamada “síndrome de burnout”, um tipo de depressão desenvolvida em decorrência da atividade profissional. São descritos em artigos sobre ‘burnout’ os modos como o estresse dos professores e dos enfermeiros se transforma em depressão, convivendo com frustrações e sofrimentos das populações que atendem.
Em escolas e hospitais é cada vez mais difícil trabalhar e o mesmo vale para o trabalho na rua, na área da segurança. Todos queremos “ter segurança”, não sermos roubados na rua, ao mesmo tempo em que reclamamos do despreparo dos policiais nos casos de abuso de poder. Também queremos que os adolescentes infratores quando saiam da FASE não ‘recaiam’ no mundo do crime e a expectativa para isso fica nos ombros da instituição. Nossos problemas sociais são grandes, graves e complexos, mas algumas categorias profissionais vem carregando nos ombros o peso das expectativas de resolver problemas de muito difícil solução – que não dependem só deles, mas em que eles são vistos como responsáveis.
Num mundo em que multidões se sentem amassadas pelo peso dos problemas, a alegria que alguns proporcionam com sua arte (jogadores de futebol, atores) fazem deles ídolos. Mas o século XXI também é o da diversidade e do respeito às diferenças – em que cada um e cada grupo tem próprios ídolos. Meus heróis são os que atendem às pessoas nas ruas, na FASE, no SUS e nas escolas, lutando contra o ‘mal do século’.
Montserrat MartinsColunista do Portal EcoDebate, é Psiquiatra.

domingo, 7 de julho de 2013

PUNCTUM por Roland Barthes


Roland Barthes, no seu livro a Câmara Clara, diz-nos que as fotos que são verdadeiramente fotos para si, possuem dois elementos estruturais. 1) algo nelas desperta um interesse geral, «um afecto médio». A este elemento Barthes chama studium, palavra latina cujo significado imediato é estudo, gosto por alguém, «uma espécie de investimento geral». 2) este studium é quebrado por algo que salta da fotografia como uma flecha e o trespassa. É o punctum da foto, palavra que remete para picada mas também para pontuação e marca. «O punctum de uma fotografia é esse acaso que nela me fere (mas também me mortifica, me apunhala)». O acaso tem uma importância decisiva na visão de Barthes da fotografia, desvalorizando, por isso, as fotos encenadas.

Segundo esta maneira de ver a fotografia, uma foto pode ser totalmente inerte, despertar um interesse geral sem punctum, ou atingir profundamente o espectador. Investidas destudium mas sem punctum as fotos agradam ou desagradam sem tocar de forma especial. Estamos no âmbito do gosto/não gosto, «duma espécie de interesse vago».

A uma foto cujo studium não é trespassado pelo punctum chama Barthes fotografia unária. «A fotografia é unária quando transforma enfaticamente a «realidade» sem a desdobrar, sem a fazer vacilar (…). A Fotografia unária tem tudo para ser banal, sendo a «unidade» da composição a primeira regra da retórica vulgar (…)»

Barthes distingue punctum de «choque». Uma foto pode ser chocante e não perturbar. Pode gritar e não ferir.

Barthes dá dois exemplos destas fotos unárias, que despertam um certo interesse sem no entanto o atingirem profundamente: as fotos de reportagem em geral e as fotos pornográficas. «As fotos de reportagem são recebidas, é tudo. Folheio-as mas não as rememoro; nelas, nunca um pormenor (em tal canto) vem interromper a minha leitura». A foto pornográfica é «como uma vitrina que, iluminada, só mostrasse uma única jóia, ela é inteiramente constituída pela apresentação de uma única coisa, o sexo: nunca há um segundo objectivo, intempestivo, que venha semiesconder, adiar ou distrair».

punctum pode ser um pormenor. «Nesse espaço habitualmente unário, por vezes (mas infelizmente, raras vezes) um «pormenor» chama a atenção. Sinto que a sua presença por si só modifica a minha leitura, que é uma nova foto que contemplo, marcada, aos meus olhos, por um valor superior. Este «pormenor» é o punctum (aquilo que me fere)». Mas opunctum não tem necessariamente de ser um pormenor pode ser uma situação de coopresença de dois elementos descontínuos ou algo difícil de detectar (está lá mas difícil de precisar).

punctum pormenor é uma espécie de «imobilidade viva: ligada a um pormenor (a um detonador), uma explosão produz uma estrelinha na trama (…) da foto». Barthes dá como exemplo deste punctum pormenor uma foto de Lewis H. Hime: Débeis numa instituição.


Lewis H. Hime

Nesta foto «não vejo de todo as cabeças monstruosas e os horríveis perfis (isso faz parte do studium); o que vejo é o pormenor descentrado, a enorme gola Danton do rapaz, a ligadura no dedo da rapariga».

punctum pormenor pode estar em estado latente, não se tornar imediatamente evidente e manifestar-se muito depois, mesmo quando não temos já a foto à nossa frente. Como exemplo dá a foto Retrato de Família de James Van der Zee.

James van der Zee
Numa primeira aproximação o punctum pareceu a Barthes estar na cintura da rapariga e nos seus braços cruzados atrás das costas «mas, diz ele, a foto trabalhou dentro de mim, e, mais tarde, compreendi que o verdadeiro punctum era o colar que ela trazia rente ao pescoço: porque (…) era esse mesmo colar (fino cordão de ouro torcido) que eu sempre vira usado por uma pessoa da minha família e que, uma vez desaparecida essa pessoa, ficou fechado numa caixa familiar de velhas jóias». É este pormenor que se ligou à morte que se tornou punctum. Não é por acaso que a morte pode ter importância no punctum, na segunda parte do livro Barthes vai analisar a questão da essência da fotografia no plano do tempo e da morte.

Barthes dá como exemplo de punctum enquanto coopresença de dois elementos descontínuos a foto de Wessing: Nicarágua, o exército patrulhando as ruas. Os dois elementos descontínuos são as freiras e os soldados.


Wessing
Como punctum indetectável Barthes refere a foto de Mapplethorpe Phil Glass e Bob Wilson. «Bob Wilson capta a minha atenção, sem que eu saiba explicar porquê, ou seja, sem que eu saiba em quê: será o olhar, a pele, a posição das mãos, os sapatos de ténis?»



Mapplethorpe

punctum não se deve confundir com o extravagante. Na foto de Nadar Savorgnan de Brazza, o elemento extravagante para Barthes é a mão do marinheiro na coxa de Brazza, mas o punctum da foto é a atitude de braços cruzados do outro marinheiro.

Nadar

punctum não é algo reflexivo que ressalte duma análise consciente. Trata-se antes de algo pré-reflexivo, pré-consciente. O punctum, diz-nos ainda Barthes, «é uma mutação viva do meu interesse, uma fulguração. Através de qualquer coisa que a marca, a foto deixa de ser uma qualquer. Essa qualquer coisa fez tilt, provocou em mim um pequeno estremecimento, um satori, a passagem de um vazio.». Isto acontece «quando a retiro do seu «bla-bla» vulgar: «Técnica», «Realidade», «Reportagem», «Arte», etc.: nada a dizer, fechar os olhos, deixar que o pormenor suba sozinho à consciência afectiva».

Livro (a ler por todos os que se interessam por fotografia):

Roland Barthes - A Câmara Clara, ed. 70, lisboa, 1981

publicado no site: http://filosofia-fotografia.blogspot.com.br/

Mulher não faz literatura



De pais iranianos, nascida em Paris, formada na École Normale Supérieure aos vinte anos, professora de Harvard aos vinte e quatro. Fala cinco línguas, uma delas, a brasileira. Mas nada foi suficiente. Lila Azam Zanganeh tornou-se a musa da FLIP pela beleza franco-iraniana.
Fossem Lydia Davis e Maria Bethania mais novas talvez houvesse concorrência. Quem sabe enquete na televisão para escolher a mulher que mais se adequasse a um padrão de beleza que lhe conferiria esse importante título.
Enquanto ao meu lado, um grupo de garotas comenta sobre Francisco Bosco, parceiro de Lila no debate: bonitinho, dizem. Mas nenhuma nota de imprensa até agora conferiu ao ensaísta o título de mais belo homem do evento.
E na literatura, exposta quase a margem da página vive a mulher. Em séculos passados, escritoras utilizavam-se de pseudônimos masculinos para publicarem seus livros. Inconcebível uma mulher capaz de produzir narrativas. Dizem até mesmo que Nabokov não simpatizava com suas tradutoras.
Recordo-me de Cecília Meireles em seu poema Motivo, afirmando: sou poeta. Contra a regra normativa de gênero que transforma poeta, no feminino, em poetiza. Esse sufixo que parece menor, rebaixado, precário diante do poeta, grande realizador.
Perdoem-me o linguajar, mas Cecília tinha culhões. Em um pequeno verso, composto por duas palavras, equipara-se a todos os poetas, rindo deste disparate arbitrário que parece inferiorizar as poetas, indignas de estarem no mesmo panteão que eles.
Mas a poesia de Cecília, nem a carreira bem sucedida de Lila e sua precisão ao escrever sobre Vladimir Nabokov tem importância. Vale o sorriso amplo que revela dentes bem cuidados. Olhos observadores e o rosto simétrico destacado pela maquiagem bem realizada. Fatores suficientes para produzir belas fotografias.
E torna-se fatal: musa. Sem tirar, nem por: musa. Deixa-se de lado a carreira, os estudos acadêmicos, a leitura atenta à obra de Nabokov, à composição dos ensaios críticos. Porque  Lila Azam Zanganeh é uma mulher bonita.
Nas páginas de seu livro O Encantador: Nabokov e a Felicidade vejo a escritora escorrer pelos cantos. Banida do reconhecimento. Exilada do panteão contemporâneo da crítica literária. Esperando desesperadamente perder a beleza para que se concentrem  no cerne da questão: Seu exímio trabalho premiado ao biografar Vladimir Nabokov. Enquanto isso, ela acena, sorri com os aplausos, sendo o bibelô de nossa imprensa.
E a beleza de Francisco Bosco? Não importa. Ele é um escritor e temos de nos concentrar naquilo que ele produz.
Enquanto isso, musa.


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