segunda-feira, 24 de setembro de 2012


FOUCAULT DESMANCHA NO AR
 
 

 

O único escritor da década passada que tinha realmente algo a dizer sobre a modernidade foi Michel Foucault. E o que ele tem a dizer é uma interminável, torturante série de variações em torno dos temas weberianos do cárcere de ferro e das inutilidades humanas, cujas almas foram moldadas para se adaptar às barras. Foucault é obcecado por prisões, hospitais, asilos, por aquilo que Erving Goffman chamou de “instituições totais”. Ao contrário de Goffman, porém, Foucault nega qualquer possibilidade, quer dentro, quer fora dessas instituições. As totalidades de Foucault absorvem todas as facetas da vida moderna. Ele desenvolve esses temas com obsessiva inflexibilidade e, até mesmo, com filigramas de sadismo, rosqueando suas ideias nos leitores como barras de ferro, apertando em nossa carne cada torneio dialético com mais uma volta do parafuso.

Foucault reserva seu mais selvagem desrespeito às pessoas que imaginam ser possível a liberdade para a moderna humanidade. Nós pensamos que sentimos um espontâneo impulso de desejo sexual? Estamos apenas sendo movidos pelas “modernas tecnologias do poder que tomam nossa vida objeto”, dirigidos “pelo poder que dispõe da sexualidade em seu controle sobre corpos e sua materialidade, suas forças, suas energias, suas sensações e prazeres”. Nós agimos politicamente, derrubamos tiranias, fazemos revoluções, criamos constituições para estabelecer e proteger direitos humanos? Mera “regressão jurídica” aos tempos do feudalismo, por constituições e cartas de direito são apenas “as foras que tornam aceitável um poder essencialmente normalizador”. Nós usamos nossas mentes para desmascarar a opressão – como Foucault aparenta estar fazendo?  Esqueça-o, pois toda espécie de inquérito sobre a condição humana “apenas desliga indivíduos de uma autoridade disciplinar para ligá-los a outra” e, portanto, apenas faz engrossar o triunfante “discurso do poder”. Toda crítica soa vazia, porque o próprio crítico está “dentro da máquina panóptica, investido de seus efeitos de poder, poder que conferimos a nós mesmos, já que somos parte do seu mecanismo”.
 
 

Submetidos a isso por um momento, percebemos que não há liberdade no mundo de Foucault porque sua linguagem compõe uma teia inconsútil, um cárcere mais constrangedor do que tudo o que Weber sonhou, no qual nenhum sopro de vida pode penetrar. Estranho é que tantos intelectuais da atualidade parecem querer definhar lá dentro, com ele. A resposta, creio eu, é que Foucault oferece a toda uma geração de refugiados dos anos 60 um álibi de dimensão histórica e mundial para o sentimento de passividade e desesperança que tomou conta de nós depois dos anos 70. Inútil tentar resistir às opressões das injustiças da vida moderna, pois até os nossos sonhos de liberdade não fazem senão acrescentar mais um elo à cadeia que nos aprisiona; porém, assim que nos damos conta da total futilidade de tudo isso, podemos ao menos relaxar.

 In: BERMAN, Marshall. Tudo o que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade. São Paulo: Companhia das Letras, 1986. P. 33-34.
 

 

 

domingo, 23 de setembro de 2012

MONA LISA - Walter Pater e Oscar Wilde


 
 
Mona Lisa, por Walter Pater: (in: O Renascimento. 1869)
“A presença que se eleva assim tão estranhamente junto às águas exprime o que no correr de mil anos os homens aprenderam a desejar. É dela a cabeça sobre a qual todos “os finais do mundo confluem” e as pálpebras mostram-se tão fatigadas. Trata-se de uma beleza trazida do interior, despontando na carne, o depósito, de minúscula em minúscula célula, de estranhos pensamentos, de sonhos fantásticos e exóticas paixões. Colocada um momento que seja junto a uma daquelas pálidas deusas gregas ou das belas mulheres da Antiguidade, e todas se perturbariam com a sua beleza, na qual a alma e todas as suas desventuras tiveram passagem! Toda vivência e os pensamentos do mundo ficaram gravados e moldados, e nela ganharam o poder de refinar e dar expressão à forma exterior, o animalismo dos gregos, a luxúria dos romanos, o misticismo da Idade Média com sua ambição espiritual e os amores tão imaginativos, o retorno ao mundo pagão, os pecados dos Borgias. Ela é mais antiga do que as rochas entre as quais está sentada; como um vampiro, ela esteve morta diversas vezes, e aprendeu os segredos da sepultura; e mergulhou até as profundezas dos mares, e se guarda envolta na Expulsão do Paraíso; e traficou estranhas tramas com mercadores orientais; e, como Leda, foi a mãe de Helena de Tróia e, como Sant´Ana, a mãe de Maria; e tudo isso soou para ela apenas como a música de liras e flautas, e ela vive apenas em suavidade com a qual foram moldadas suas feições sempre em mudança, e tingidas suas pálpebras e mãos. A fantasia da vida eterna, arrostando numa só dez mil existências, é muito antiga; e a moderna filosofia concebeu a ideia de humanidade como tendo sido forjada, e resumindo em si, todos os modos do pensamento e da vida. Sem dúvida, Lisa poderia ser a incorporação da antiga fantasia, o símbolo da concepção de modernidade.”
Mario Praz dizia que com esse trecho Pater fora “quem descobriu a femme fatale no famoso sorriso da Mona Lisa”, ao mencionar “um insondável sorriso, como se possuísse algo de sinistro”.
O sucesso do texto de Pater deveu-se à beleza e às associações literárias e visuais que conjurava: “uma estranha presença”, o peso do passado (“mil anos”),“sonhos fantásticos e exóticas paixões”, belas deusas gregas, o “animalismo dos gregos”, “a luxúria dos romanos”, misticismo medieval, paganismo, os Bórgias, vampirismo e fantasmas (“ela esteve morta várias vezes”), o Oriente (traficando com “mercadores orientais”), Leda e Helena de Tróia. Todos os suspeitos de sempre estão presentes. A popularidade de um texto depende da sua capacidade de ressoar no interior de uma consciência estabelecida previamente, mais do que pela sua novidade. O tema da mulher bela que leva seus homens à destruição foi um grande elemento de conexão entre as populares e chocantes novelas góticas do final do século XVIII, os românticos franceses, o decadentismo e o simbolismo franceses e britânicos, o movimento pré-rafaelita e o nascimento da modernidade.
A qualidade do texto de Walter Pater agiu como um amplificador de temas já existentes na cultura. Mona Lisa talvez encarne a mulher como um objeto de atração ambígua, parte tentadora, parte sacerdotisa, ao mesmo tempo corrompida e inocente.
A fonte do texto de Pater é o escrito de Charles Clément sobre a Mona Lisa (1861):
“Amantes, poetas, sonhadores, vão todos ver a Mona Lisa, e morram aos seus pés! Nem o seu desespero nem a sua morte conseguirão apagar daquela boca desdenhosa o sorriso enfeitiçado, o implacável sorriso que promete arrebatamentos e rouba a felicidade”.
 
OSCAR WILDE- Pater e a Mona LIsa

Oscar Wilde, em “The Critical as Artist”,publicado em 1890, percebe em Walter Pater o papel criativo do crítico que está munido de uma poderosa e majestosa prosa. Wilde reconhece a crítica de boa qualidade como sendo a “que trata a obra de arte simplesmente como o ponto de partida para uma nova criação”.
“Quem está ligando se o Sr. Pater colocou no retrato da Mona Lisa algo que o Leonardo jamais sonhou? O pintor pode ter sido apena s o escravo de um sorriso arcaico, como alguém já fantasiou, mas sempre que atravesso as frias galerias do Palácio do Louvre e me ponho diante daquela figura estranha, “assentada em sua poltrona de mármore em meio àquele círculo de rochas fantásticas, como se estivesse sob uma tênue luz imersa no oceano”, murmuro para mim mesmo: “Ela é mais antiga do que as rochas entre as quais está sentada”. E digo ao amigo que me acompanha: “A presença que se eleva assim tão estranhamente junto às águas exprime o que no decorrer de mil anos os homens aprenderam a desejar”. Ao que ele me responde: “É dela a cabeça sobre a qual todos os finais do mundo confluem e as pálpebras mostram-se um tanto fatigadas”. (Oscar Wilde)
 


quinta-feira, 20 de setembro de 2012


LEONILSON: DOBRAS DA ALMA

PAULO HERKENHOFF

 

Em sua arquitetura simbólica da interioridade, Leonilson cria uma espécie de hagiografia pessoal, construindo um vocabulário de formas significantes, articuladas em seu discurso confessional, íntimo e privado, que o coloca muito próximo de Felix Gonzalez-Torres. Atuando quase que por recolhimento religioso, Leonilson expõe discretamente desejo, sublimação e fé em sua obra. Em sua visão particular da religião, observa o peso da culpa incutida no processo de formação católica e interpreta história dos santos e de Jesus Cristo para concluir que “a Bíblia é um livro não apenas gay, mas muito gay”. A identificação e sua condição pessoal com o próprio teor das Escrituras leva Leonilson a produzir obras como Conversa no seio de Cristo (1993), ou a comparações pessoais com Cristo, no bordado 33/34 (1991). Aqui, Leonilson constitui uma intimidade com um discurso biográfico e metafísico que poderia ser comparado ao pathos no barroco ou à obra de Ismael Nery.

Ismael Nery

No entanto, Leonilson está interessado no trânsito da angústia metafísica na direção da experiência possível do ser. Em entrevista a Lisete Lagnado, Leonilson projeta a função do artista como uma espécie de doação, que ele remete ao Sagrado Coração, cujo caráter devocional se expandira no barroco. O artista comenta “eu lembro do Klee fazendo aquelas coisinhas... você olha, é uma aquarelinha, mas ele tirou do coração e pôs na parede. Como Jesus Cristo, que andou em cima do lago da Galiléia. Tirou o coração, deu para São João Batista e falou: “aqui está meu coração, faça dele o que quiser”. Isso é de uma beleza para mim, de um poder tão grande...”
Algumas obras de Leonilson parecem surgidas da tradição do ex-voto, que contemporaneamente havia sido retomado por Yves Klein em obra dedicada a Santa Rita de Cássia.
 
Klein - Ex-voto
 
Na tradição de artistas como Joaquim Torres-Garcia e Rubem Valentim, Leonilson constitui um pequeno vocabulário de símbolos, como a linha interrompida no bordado é o riozinho que significa água. Leonilson introduziu bordados onde havia pintura e desenho para coser símbolos, costurar afetividade, montar cesura, prender ornamentos e fixar dobras da alma como acidentes de seu próprio ser.”

 In: HERKENHOFF, Paulo (curador). Tomie Ohtake na trama espiritual da arte brasileira. São Paulo: Instituto Tomie Ohtake, 2003. PP.34-5.
 

sábado, 8 de setembro de 2012


MARX E A QUESTÃO JUDAICA

 

"Sobre a Questão Judaica" (em alemão: "Zur Judenfrage") é um ensaio de Karl Marx escrito no outono de 1843. É uma das primeiras tentativas de Marx de lidar com categorias que seriam chamadas mais tarde de Materialismo histórico - concepção materialista da história. Tem-se argumentado que que a obra contém manifestações de anti-semitismo - ver seção Interpretação abaixo.

O ensaio critica dois estudos sobre a tentativa dos judeus de conseguir emancipação política na Prússia de autoria de outro jovem hegeliano, Bruno Bauer. Bauer argumentou que os judeus somente poderiam atingir a emancipação política se renunciassem a sua consciência religiosa particular, uma vez que a emancipação política requer um estado secular, que ele assume não deixar muito "espaço" para identidades sociais como a religião. De acordo com Bauer, as demandas religiosas são incompatíveis com a idéia de "Direitos do Homem." A emancipação política verdadeira, para Bauer, requer a abolição da religião.

Marx usa o ensaio de Bauer como uma oportunidade para a sua própria análise dos direitos liberais. Marx argumenta que Bauer está equivocado na sua suposição de que num "estado secular" a religião não iria desempenhar um papel proeminente na vida social, e, como exemplo se refere à persistência da religião nos Estados Unidos, que, ao contrário da Prússia, não tinha religião de estado. Na análise de Marx, o "estado secular" não está em oposição à religião, na verdade a pressupõe. A remoção das qualificações de cidadãos relacionadas à religião ou à propriedade não significava a abolição da religião ou da propriedade, apenas introduzia uma nova forma de ver o cidadão desconexo dessas coisas.

[1] Nessa nota Marx vai além da questão da liberdade religiosa em direção à sua preocupação maior - a análise de Bauer da "emancipação política." Marx conclui que enquanto indivíduos podem ser 'espiritualmente' e 'politicamente' livres em um estado secular, eles ainda podem estar presos à restrições materiais sobre a sua liberdade pela desigualdade de renda, uma suposição que iria formar mais tarde de sua crítica ao capitalismo.

No ponto de vista de Marx, Bauer falha em distinguir emancipação política e humana: como assinalado acima, a emancipação política em um Estado moderno não requer que os judeus (ou os cristão, por esse motivo) renunciem à religião; apenas a emancipação humana completa envolveria o desaparecimento da religião, mas isso ainda não seria possível, não "na a ordem mundial ora existente".

Na segunda parte do ensaio (que é significativamente mais curta, no entanto uma das mais discutidas e citadas atualmente), Marx questiona a análise "teológica" de Bauer do judaísmo e sua relação com o cristianismo. Bauer afirmara que a renúncia da religião seria especialmente difícil para os judeus, uma vez que judaísmo é, a seu ver, um estágio primitivo no desenvolvimento do cristianismo; assim, para alcançar a liberdade através da renúncia da religião, os cristãos teriam que atravessar apenas um estágio, enquanto os judeus teriam de atravessar dois. Em resposta a isso, Marx argumenta que a religião judaica não precisa ter todo o significado que assume na análise de Bauer, porque ela é apenas um reflexo da vida econômica dos judeus. Esse é o ponto de partida de um argumento complexo e um tanto metafórico que parte do estereótipo do judeu como um "trambiqueiro" financeiramente hábil e estabelece uma conexão entre o judaísmo enquanto religião e a economia da sociedade burguesa contemporânea. Dessa forma, a religião judaica não apenas não precisaria desaparecer naquela sociedade, como argumenta Bauer, mas é na verdade parte natural dela. Tendo equacionada figurativamente o "judaísmo prático" com "trambicagem", Marx conclui que "os cristãos tornaram-se judeus"; e, em última instância, é a humanidade (tanto cristãos quanto judeus[2]) que necessitam se amancipar do judaísmo ("prático"). [3] Excertos desse trecho do ensaio são frequentemente citados como prova do anti-semitismo de Marx. Para análise a esse respeito, ver a seção Interpretações.

Zur Judenfrage foi primeiramente publicado por Marx e Arnold Ruge em Fevereiro de 1844 no Deutsch–Französische Jahrbücher. De dezembro de 1843 a outubro de 1844, Bruno Bauer publicou o mensal Allgemeine Literatur-Zeitung (Gazeta Literária Geral) em Charlottenburg (hoje Berlim). Nele, ele respondeu às críticas feitas aos seus próprios ensaios sobre a questão judaica feitas por Marx e outros. Então, em 1845, Friedrich Engels e Marx publicaram a polêmica crítica dos Jovens Hegelianos intitulada Sagrada Família. Em partes[4] do livro, Marx novamente apresentou sua visão, distinta da de Bauer, sobre a questão judaica e a emancipação política e humana.

Uma tradução francesa apareceu em 1850 em Paris no livro 'Qe'est-ce que la bible d'apres la nouvelle philosophie allemand, de Hermann Ewerbeck.

Em 1879, o historiador Heinrich von Treitschke publicou o artigo Unsere Aussichten (Nossos Prospectos), no qual ele demandou que os judeus fossem assimilados à cultura germânica e descreveu os imigrantes judeus como uma ameaça à Alemanha. Esse artigo inflamaria uma controvérsia, à que o jornal Sozialdemokrat, editado por Eduard Bernstein, reagiu republicando quase a totalidade da segunda parte de Zur Judenfrage em junho e e julho de 1881.

O ensaio foi republicado na íntegra em outubro de 1890 no Berliner Volksblatt, então editado por Wilhelm Liebknecht. [5]

Uma tradução para a língua inglesa de Zur Judenfrage foi publicada juntamente com outros artigos de Marx em 1959 sob o título "A World Without Jews".[6] O editor, Dagobert D. Runes, tinha a intenção de revelar o alegado anti-semitismo de Marx.[7] Essa edição é criticada porque o leitor não é informado que seu título não da autoria de Marx e por distorções no texto.[8]

Um manuscrito do ensaio ainda não foi transmitido.[5]

INTERPRETAÇÕES

Hyam Maccoby tem argumentado que o anti-semitismo de Marx se manifesta primeiramente no seu ensaio de 1843, "Sobre a Questão Judaica." Nele Marx argumenta que o mundo moderno comercializado é o triunfo do judaísmo, uma pseudo-religião cujo deus é o dinheiro. Maccoby sugere que Marx ficava constrangido por causa das suas origens judias e usava os judeus como um "yardstick of evil." Em anos posteriores, o anti-semitismo de Marx era na sua maior parte limitado a cartas e conversas privadas por causa da forte identificação pública com o anti-semitismo que tinham seus inimigos políticos tanto à esquerda (Pierre-Joseph Proudhon e Mikhail Bakunin) e à direita (a aristocracia e a Igreja).[9] Bernard Lewis encontrou muitas indicações de linguagem anti-semita nos trabalhos posteriores de Marx. Por exemplo, em um artigo Marx fala de judeus poloneses como "a mais suja das raças."[10]

De acordo com vários acadêmicos, para Marx os judeus eram a corporificação do capitalismo e os criadores de todos os seus males. A identificação de Marx do judaísmo com o capitalismo, junto com seus pronunciamentos sobre os judeus, influenciaram fortemente movimentos socialistas e moldaram suas atitudes e políticas e relação aos judeus. Seu ensaio influenciou anti-semitas nacional-socialistas, soviéticos e árabes.[11]

Abram Leon, no seu livro The Jewish Question (publicado em 1946)[12] examina a história dos judeus de um ponto de vista materialista. De acordo com Leon, o ensaio de Marx afirma que “não é necessário começar pela religião para explicar a história judaica; pelo contrário: a preservação da religião ou nacionalidade judaica pode ser explicada somente pelo 'judeu real', isto é, pelo judeu no seu papel econômico e social”.

Isaac Deutscher (1959)[13] compara Marx com Elisha ben Abuyah, Bento de Espinosa, Heinrich Heine, Rosa Luxemburgo, Leon Trotsky, e Sigmund Freud, todos tidos por ele como hereges que trasncendem o judaísmo, e no entanto ainda pertencendo à tradição judaica. De acordo com Deutscher, a “idéia de socialismo e de sociedade sem classes ou estado” de Marx expressada no ensaio é tão universal como a ética e o Deus de Spinoza.

Shlomo Avineri (1964)[14], enquanto considera o anti-semitismo de Marx como um fato amplamente reconhecido, assinala que a crítica filosófica de Marx sobre a emancipação judaica não o teria levado a rejeitar a emancipação como um objetivo político imediato.[14] Em uma carta a Arnold Ruge, escrita em março de 1843, [15] Marx escreve que ele tinha a intenção de apoiar uma petição dos judeus à Assembléia Provincial. Ele explica que apesar do fato dele detestar o judaísmo como religião, ele também permanece não convencido da visão de Bauer (de que os judeus não deveriam ser emancipados antes de abandonarem o judaísmo, ver acima).

No seu livro Por Marx (1965), Louis Althusser afirma que “em Sobre a Questão Judaica, Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, etc., e até geralmente em Sagrada Família (...) Marx estava meramente aplicando a teoria da alienação, isto é, e teoria da 'natureza humana' de Feuerbach, à política e às atividades concretas do homem, antes de estendê-la (em grande parte) à economia política nos Manuscritos”.[16] Ele se opõe a uma tendência que considera que o “Capital não é mais lido como Sobre a Questão Judaica, Sobre a Questão Judaica é lido como se fosse o Capital”.[17] Para Althusser, o ensaio “é um texto profundamente 'ideológico'o”, “comprometido com a luta pelo comunismo”, mas sem ser marxista; “então ele não pode, teoricamente, ser identificado com os últimos textos que definiriam o materialismo histórico”.[18]

David McLellan, no entantor, tem argumentado que "Sobre a Quastão Judaica" deve ser compreendido em termos do debate de Marx com Bruno Bauer a respeito da natureza da emancipação política na Alemanha. De acordo com McLellan, Marx usou a palavra "Judentum" no seu sentido coloquial de "comércio" para argumentar que os alemães sofrem de capitalismo e devem ser dele emancipados. A segunda metade do ensaio de Marx, conclui McLellan, deve ser lido como "um trocadilho estendido às custas de Bauer."[19].

Hal Draper (1977)[20] observou que a linguagem da Parte II de Sobre a Questão Judaica seguiu a visão do papel dos judeus dado no ensaio On the Money System do judeus socialista Moses Hess .

Stephen Greenblatt (1978)[21] compara o ensaio com a peça de Christopher Marlowe, The Jew of Malta. De acordo com Greenblatt, “ambos escritores esperam trazer atenção à atividade vista como alienígena e ainda assim central para a vida da comunidade e dirigir a ela o sentimento anti-semita da audiência”. Greenblatt está atribuindo a Marx uma “afiada, até histérica, negação do seu background religioso”.

Y. Peled (1992)[22] vê Marx transpondo o debate sobre a emancipação judaica do plano teológico para o plano sociológico, assim limitando um dos principais argumentos de Bauer. No ponto de vista de Peleds, isso foi uma resposta menos que satisfatória a Bauer, mas permitiu a Marx apresentar suas próprias idéias sobre a emancipação enquanto, ao mesmo tempo, deslanchava sua crítica à alienação econômica. Ele conclui que os avanços filosóficos de Marx foram uma consequência do seu comprometimento com a emancipação judaica, e a ela integralmente relacionados.

Outros argumentam que Sobre a Questão Judaica é primariamente uma crítica dos direitos liberais em vez de uma crítica ao judaísmo e que passagens aparentemente anti-semíticas devem ser lidas nesse contexto.[23]

Para o sociólogo Robert Fine (2006)[24] o ensaio de Bauer “ecoava a representação geralmente preconceituosa do judeu como ‘mercador’ e ‘moneyman’”, enquanto que “o alvo de Marx era defender o direito dos judeus de completa emancipação civil e política (isto é, a posse de direitos civis e políticos iguais) junto com todos os outros cidadãos alemães”. Fine argumenta que “a linha de ataque que Marx adota não não tem o intuito de contrastar o rude estereótipo que Bauer tem dos judeus com a real situação dos judeus na Alemanha atual”, mas sim o de “revelar que Bauer não tinha a menor noção da natureza da democracia moderna”.

Enquanto o sociólogo Larry Ray em sua resposta (2006)[25] reconhece a leitura de Fine do ensaio como uma irônica defesa da emancipação judaica, ele assinala a polivalência da linguagem de Marx. Ray traduz uma frase de Zur Judenfrage e a interpreta como um oposição assimilacionista “na qual não há espaço dentro da humanidade emancipada par os judeus como uma identidade étnica ou cultural separada”, e que advoga “uma sociedade em que a diferenca, tanto cultural como econômica é eliminada”. Aqui Ray enxerga Marx em um a “linha de pensamento esquerdista que tem se mostrado incapaz de abordar formas de opressão não diretamente ligadas à classe social”.

 

REFERÊNCIAS:

1.     Marx 1844:

[O] anulamento político da propriedade privada não apenas falha em abolir a propriedade privada como até mesmo a pressupõe. O Estado abole, a sua própria maneira, distinções devido ao nascimento, posição social, educação e profissão, quando declara que nascimento, posição social, educação ou profissão são distinções não-políticas, quando proclama, sem levar em conta essas distinções, que todo membro da nação é um participante igual da soberania nacional, quando trata todos os elementos da vida real da nação do ponto de vista do Estado. Ainda assim, o Estado permite à propriedade privada, educação, ocupação, que ajam à sua maneira - i.e., Nevertheless, the state allows private property, education, occupation, to act in their way – i.e., enquanto propriedade privada, educação, profissão, e a fim de exercer a influência da sua natureza especial. Longe de abolir estas reais distinções, o Estado apenas existe na pressuposição da sua existência; ele se sente um Estado político e assevera sua universalidade somente em oposição a esses elementos de seu ser.

2.     Marx 1844:

Por outro lado, se o judeu reconhece que essa sua natureza prática é fútil e trabalha no sentido de abolí-la, ele se dissocia do seu desenvolvimento anterior, trabalha pela emancipação humana e se volta contra a expressão prática suprema do auto-estranhamento.

3.     Marx 1844:

O judeu se emancipou de maneira judaica, não apenas porque ele adquiriu poder financeiro, mas também porque, inclusive através dele, o dinheiro se tornou o poder do mundo e o espírto judeu prático se tornou o espírito prático das nações cristãs. Os judeus se amanciparam na mesma medida em que os cristãos se tornaram judeus.

...

Na análise final, a emancipação dos judeus é a emancipação da humanidade do judaísmo.

4.     Engels, Marx: The Holy Family 1845, Chapter VI, The Jewish Question No. 1, No. 2, No. 3

5.     a b Marx-Engels Gesammtausgabe (MEGA), Volume II, apparatus, pp. 648 (German) Dietz, Berlin 1982

6.     A World Without Jews, resenha em: The Western Socialist, Vol. 27 - No. 212, No. 1, 1960, pgs. 5-7

7.     Marx and Anti-Semitism, discussão em: The Western Socialist, Vol. 27 - No. 214, No. 3, 1960, pgs. 11, 19-21

8.     Draper 1977, Note 1

9.     Hyam Maccoby. Antisemitism and Modernity: Innovation and Continuity. Routledge. (2006). ISBN 041531173X p. 64-66

10.  Bernard Lewis. Semites and Anti-Semites: An Inquiry into Conflict and Prejudice. (1999). W. W. Norton & Company. ISBN 0393318397 p.112

11.  Edward H. Flannery. The Anguish of the Jews: Twenty-Three Centuries of Antisemitism. Paulist Press. (2004). ISBN 0809143240 p. 168, Marvin Perry, Frederick M. Schweitzer. Antisemitism: Myth and Hate from Antiquity to the Present. Palgrave Macmillan. (2005). ISBN 1403968934 p. 154-157

12.  Leon 1950, Chapter One, Premises

13.  Isaac Deutscher: Message of the Non-Jewish Jew na revista American Socialist 1958

14.  a b Avineri, Shlomo (1964). "Marx and Jewish Emancipation". Journal of the History of Ideas 25 (3): 445-50.

15.  “(...) Eu acabo de receber a visita do chefe da comunidade judaica daqui, que me pediu que escrevesse uma petição em nome dos judeus a Assembléia Provincial e eu estou disposto a fazê-la. Não importa o quanto eu deteste a fé judaica, a visão de Bauer me parece demasiado abstrata. O ponto é fazer tantas brechas quanto possível no Estado cristão e incorporar nele tanto quanto podemos do que é racional. Pelo menos, deve ser tentado -- e a amargura cresce com cada petição que é rejeitada sob protestos”, postscript de uma carta de Marx a Arnold Ruge em Dresden, escrita em: Colônia, 13 de março de 1843

16.  Althusser 1965, Part One: 'Manifestos Filosóficos' de Feuerbach, publicado primeiramente em La Nouvelle Critique, em dezembro de 1960.

17.  Althusser 1965, Part Two: On the Young Marx: Theoretical Questions, apareceu primeiro em La Pensée, março-abril de 1961

18.  Althusser 1965, Part Five: ‘The 1844 Manuscripts’, apareceu primeiramente em La Pensée, fevereiro de 1963.

19.  David McLellan: Marx before Marxism (1970), pp.141-142

20.  Draper 1977

21.  Stephen J. Greenblatt: Marlowe, Marx, and Anti-Semitism, in: Critical Inquiry, Vol. 5, No. 2 (Winter, 1978), pp. 291-307; Excerto

22.  Y. Peled: From theology to sociology: Bruno Bauer and Karl Marx on the question of Jewish emancipation, in: History of Political Thought, Volume 13, Number 3, 1992, pp. 463-485(23); Abstract

23.  Brown, Wendy (1995), "Rights and Identity in Late Modernity: Revisiting the 'Jewish Question'", in Sarat, Austin; Kearns, Thomas, Identities, Politics, and Rights, University of Michigan Press, pp. 85-130

24.  Robert Fine: Karl Marx and the Radical Critique of Anti-Semitism in: Engage Journal 2, May 2006

25.  Larry Ray: Marx and the Radical Critique of difference in: Engage Journal 3, September 2006.