segunda-feira, 9 de abril de 2012

Travestis da Arte: Cicciolina, Michael Jackson e Andy Warhol


Cicciolina, Michael Jackson e Andy Warhol - por Jean Baudrillard

Cicciolina e Jeff Koons


Vejam a Cicciolina. Haverá encarnação mais maravilhosa do sexo, da inocência pornográfica do sexo? Contrapuseram-na a Madonna, virgem produto da aeróbica e da estética glacial, desprovida de qualquer charme e sensualidade, andróide com musculatura, que, por isso mesmo, conseguiram transformar em ídolos de síntese. Mas não é também Cicciolina uma transexual? Os longos cabelos loiros, os seios moldados em concha, as formas ideais de boneca inflável, o erotismo liofilizado de história em quadrinhos ou de ficção científica e, principalmente, o exagero do discurso sexual (nunca perverso, nunca devasso), transgressão total sob controle; a mulher ideal dos telefones rosas (minitel rose*), mais uma ideologia erótica carnívora que nenhuma mulher hoje assumiria – a não ser uma transexual, um travesti: só eles, é sabido, vivem de signos exagerados, de signos carnívoros da sexualidade. O ectoplasma carnal que é a Cicciolina encontra-se com a nitroglicerina artificial da Madonna ou com o charme andrógino e frankesteiniano de Michael Jackson. São todos mutantes, travestis, seres geneticamente barrocos, cujo visual erótico esconde a indeterminação genética. Todos são gender-benders, trânsfugas do sexo.



Vejam Michael Jackson. É um mutante solitário, precursor da perfeita mestiçagem universal, a nova raça segundo as raças. As crianças de hoje não têm bloqueios quanto a uma sociedade mestiça, esse é o universo delas, e Michael Jackson prefigura o que elas imaginam como futuro ideal. Sem esquecer que Michael fez plástica, alisou o cabelo e fez tratamento para clarear a pele, enfim, ele se constitui minuciosamente; é isso mesmo que o torna uma criança inocente e pura – o andrógino artificial da fábula que, mais do que Cristo, pode reinar no mundo e reconciliá-lo, porque é mais do que o menino-deus: é menino-prótese, embrião de toda as formas sonhadas de mutação que nos livrariam da raça e do sexo.



Poderiam também ser evocados os travestis da estética, dos quais Andy Warhol seria o emblema. Como Michael Jackson, Andy Warhol é um mutante solitário, precursor de uma mestiçagem perfeita e universal da arte, de uma nova estética segundo as estéticas. Como Jackson, é uma personagem perfeitamente artificial, também inocente e pura, um andrógino da nova geração, espécie de prótese mística e de máquina artificial que nos livra, por sua perfeição, tanto do sexo quanto da estética. Quando Warhol diz: “Todas as obras são belas, não preciso escolher, todas as obras contemporâneas se equivalem”; quando diz: “A arte está em toda parte, logo, já não existe, todo mundo é genial”, ninguém pode acreditar. Mas ele está descrevendo a configuração da estética moderna, que é a de um agnosticismo radical.

Somos todos agnósticos ou travestis da arte ou do sexo. Já não temos convicção estética nem sexual, mas professamos todas.


 

In: BAUDRILLARD, Jean. A transparência do mal: ensaio sobre os fenômenos extremos.  Campinas: Papirus, 1992.

*Minitel rose: é um sistema francês de microcomputador acoplado ao telefone, que permite acesso a fontes de informações oficiais e particulares de todo tipo, também permite a troca de mensagens de caráter amoroso, erótico ou obsceno.

FOTOS:











domingo, 8 de abril de 2012

A MULHER E A CASA - João Cabral de Melo Neto




Tua sedução é menos
de mulher do que de casa:
pois vem de como é por dentro
ou por detrás da fachada.

Mesmo quando ela possui
tua plácida elegância,
esse teu reboco claro,
riso franco de varandas,

uma casa não é nunca
só para ser contemplada;
melhor: somente por dentro
é possível contemplá-la.

Seduz pelo que é dentro,
ou será, quando se abra;
pelo que pode ser dentro
de suas paredes fechadas;

pelo que dentro fizeram
com seus vazios, com o nada;
pelos espaços de dentro,
não pelo que dentro guarda;

pelos espaços de dentro:
seus recintos, suas áreas,
organizando-se dentro
em corredores e salas,

os quais sugerindo ao homem
estâncias aconchegadas,
paredes bem revestidas
ou recessos bons de cavas,

exercem sobre esse homem
efeito igual ao que causas:
a vontade de corrê-la
por dentro, de visitá-la.