quinta-feira, 1 de março de 2012

SINAIS DE PONTUAÇÃO - T. W. ADORNO


(Parte 1)


            Quanto menos os sinais de pontuação, tomados isoladamente, estão carregados de sentido ou expressão, quanto mais ele se tornam, na linguagem, o pólo oposto aos nomes, tanto mais decisivamente cada um deles conquista seu status fisiogmônico, sua expressão própria, que certamente é inseparável da função sintática, mas não se esgota nela.

O ponto de exclamação não se assemelha a um ameaçador dedo em riste? Os pontos de interrogação não se parecem com luzes de alerta ou com uma piscadela? Os dois-pontos, segundo Karl Kraus, abrem a boca: coitado do escritor que não souber saciá-los. Visualmente, o ponto-e-vírgula lembra um bigode caído; é ainda mais forte, para mim, a sensação de seu sabor rústico. Marotas e satisfeitas, as aspas [“”] lambem os lábios.

            Todos são sinais de trânsito; afinal, estes os tornaram como modelo. Pontos de exclamação correspondem ao vermelho; dois-pontos, verde; e os travessões ordenam stop. Mas foi um erro da Escola de George confundi-los, por causa disso, com sinais de comunicação. Eles são sobretudo sinais de elocução. Em vez de zelosamente servirem ao trânsito entre a linguagem e o leitor, funcionam como hieróglifos no tráfego que acontece no interior da linguagem, em suas próprias vias. É supérfluo, por isso, omiti-los como supérfluos: assim eles apenas se escondem. Cada texto, mesmo o mais densamente tramado, cita-os por si mesmo, espíritos amistosos cuja presença incorpórea alimenta o corpo da linguagem.

            Em nenhum de seus elementos a linguagem é tão semelhante à música quanto nos sinais de pontuação. A vírgula e o ponto correspondem à cadência interrompida e à cadência autêntica. Pontos de exclamação são como silenciosos golpes de pratos, pontos de interrogação são acentuações de frase musicais no contratempo, dois-pontos são acordes de sétima da dominante; e a diferença entre vírgula e ponto-e-vírgula só será sentida corretamente por quem percebe o diferente peso de um fraseado forte e fraco na forma musical. Mas talvez a idiossincrasia contra os sinais de pontuação, surgida há cinqüenta anos e da qual nenhuma pessoa atenta pode escapar, seja menos a revolta contra um elemento ornamental do que a expressão da forte divergência entre música e linguagem. Seria muito difícil considerar como obra do acaso, entretanto, que o contato da música com os sinais lingüísticos de pontuação esteja vinculado ao esquema de tonalidade, um esquema que nesse meio-tempo se desintegrou. Nesse sentido, os esforços da nova música poderiam ser corretamente descritos como a busca de sinais de pontuação sem tonalidade. Mas se a música é forçada a preservar, nos sinais de pontuação, a imagem de sua semelhança com a linguagem, também a linguagem assume sua semelhança com a música, na medida em que desconfia desses sinais.

Schoenberg


            A diferença entre o ponto-e-vírgula grego [‘], aquele ponto bem alto que deseja impedir que se baixe a voz, e o alemão [;], cujo ponto sobreposto ao traço acaba consumando esse rebaixamento, ao mesmo tempo em que, ao incorporar a vírgula, deixa a voz em suspenso, é verdadeiramente uma imagem dialética. Essa diferença parece imitar aquela entre as Eras Antiga e Cristã, a finitude rompida pelo infinito, ainda que a comparação seja perigosa, pois talvez os sinais gregos só tenham sido inventados pelos humanistas do século XVI. A história se sedimentou nos sinais de pontuação, e é justamente essa história, para além do significado ou da função gramatical, que a partir deles nos olha de frente, congelada e ainda um pouco trêmula. Quase seríamos tentados a considerar como os verdadeiros sinais de pontuação apenas os da escrita tradicional alemã [Fraktur], cuja imagem gráfica preserva traços alegóricos, enquanto os da escrita romana [Antiqua] corresponderiam a meras imitações secularizadas.

A essência histórica dos sinais de pontuação vem à luz no modo como, neles, o que se torna obsoleto é justamente o que um dia foi moderno. Pontos de exclamação tornaram-se insuportáveis como gestos de autoridade, com os quais o escritor pretende introduzir, de fora, uma ênfase que a própria coisa não é capaz de exercer, enquanto a contrapartida musical de exclamação, o sforzato, é ainda hoje tão imprescindível quanto no tempo de Beethoven, quando marcava a irrupção da vontade subjetiva da trama. Os pontos de exclamação, porém, degeneraram em usurpadores da autoridade, asserções de importância. Foram eles, no entanto, que cunharam a figura gráfica característica do Expressionismo alemão. Sua proliferação apoiava um protesto contra as convenções, e ao mesmo tempo era um sintoma da impossibilidade de se modificar a linguagem por dentro, enquanto ela era abalada por fora. Eles sobrevivem como marcas da fratura entre a idéia e as realizações de cada época, e sua evocação impotente os redime na memória: desesperados gestos de escrita, que buscaram em vão escapara para além da linguagem. O Expressionismo se consumiu nas chamas desse gesto, prescreveu a si mesmo, como os pontos de exclamação, o efeito que buscava, e por isso se transformou em fumaça, junto com eles. Nos textos expressionistas, os pontos de exclamação se assemelham às cifras milionárias das cédulas do período da inflação alemã.

            Os diletantes literários podem ser reconhecidos por seu desejo de juntar tudo com tudo. Suas obras conectam as frases por meio de partículas lógicas, mesmo que as relações afirmadas por essas partículas não sejam válidas. Para quem não é capaz de pensar algo verdadeiramente como uma unidade, qualquer coisa que sugira desintegração ou descontinuidade torna-se insuportável; apenas quem consegue apreender o todo é capaz de entender as cesuras, que podem ser reconhecidas, entretanto, com o auxílio do “traço do pensamento” [Gedankenstrich]. Nele, o pensamento toma consciência de seu caráter fragmentário. Não é por acaso que, na era da progressiva desintegração da linguagem, esse sinal tenha sido negligenciado precisamente no caos onde cumpre sua função: onde separa o que pretensamente estaria ligado. O travessão ainda serve apenas para preparar surpresas traiçoeiras que, justamente por terem sido preparadas, já não mais surpreendem.

            O travessão sério: seu mestre inigualável, a literatura alemã do século XIX, foi Theodor Storn. Raramente os sinais de pontuação estiveram tão profundamente aliados ao teor da obra como os travessões em suas novelas, linhas mudas buscando o passado, rugas na face do texto. Com eles, a voz do narrador cai em um preocupado silêncio: o tempo inserido entre duas frases, nu e cru entre os dois eventos que se aproximam, é o tempo de uma herança pesada, que insinua a desgraça do contexto natural e do pudor de a ele se referir. É assim, com enorme discrição, que o mito se esconde no século XIX; buscando refúgio na tipografia.

Entre as perdas sofridas pela pontuação no porcesso de desagregação da linguagem está a barra transversal [/], usada por exemplo para separar os vesos de uma estrofe, quando estes são citados em um texto de prosa. Dispostos como estrofe, os versos destruiriam barbaramente o equilíbrio da linguagem, mas se fossem reproduzidos simplesmente como prosa causariam um efeito ridículo, porque a métrica e a rima soariam como um jogo de palavras feito ao acaso. O travessão moderno é demasiado brusco para realizar o que deve ser feito nesses casos. A capacidade de perceber fisiognomicamente tais diferenças é, no entanto, o pressuposto para todo uso adequado dos sinais de pontuação.

As reticências, que eram o meio preferido, na época do Impressionismo comercializado como “atmosfera”, para se deixar uma frase aberta a vários sentidos, sugerem a infinitude de pensamento e associação, justamente o que falta aos escritores de segunda categoria, que se contentam em simular essa infinitude por meio do sinal gráfico. Mas se aqueles três pontinhos, tomados da repetição de frases decimais na aritmética, são reduzidos a dois, como fez a Escola de George, então o que se pretende é continuar impunemente a reivindicar a infinitude fictícia, na medida em que se apresenta como sendo exato algo que, segundo seu próprio sentido, quer ser inexato. A pontuação utilizada pelo escrevinhador sem vergonha não é melhor do que a do escritor envergonhado.

 Texto retirado de "Notas de literatura" de T. W. Adorno


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